Revista Época
Publicado em 18/10/2016


Em novo romance, Cristovão Tezza volta
à sua personagem favorita

A Beatriz criada pelo escritor catarinense-curitibano já protagonizou um romance e uma coletânea de contos. Ela volta agora como intérprete da FIFA

Ruan de Souza Gabriel

 

No dia seguinte a um tedioso evento literário, Cristovão Tezza, catarinense adotado por Curitiba, escreveu quase de um jato só um conto em que um escritor rabugento chamado Paulo Donetti dá vexame diante de uma plateia repleta de leitores. Donetti termina o conto derretido por uma tradutora de pele branquíssima e olhos muito verdes. O nome dela era Alice. “Alice é um nome afetiva e literariamente muito carregado na nossa cultura a partir da obra-prima de Lewis Carroll”, afirma Tezza. “É inevitável a associação que qualquer leitor mais letrado fará.” Tezza decidiu, enfim, rebatizá-la de Beatriz, outro nome de peso literário. Há a Beatriz de A divina comédia, que aponta o caminho do paraíso a Dante Alighieri e é resgatada por Jorge Luis Borges no primoroso conto O aleph. E há a Beatriz dos versos de Chico Buarque. Mas Tezza não pensava em homenagear nenhuma delas quando escreveu sua Beatriz. “Para mim, foi basicamente uma escolha sonora. Beatriz é um belo nome, forte e matizado.”

Donetti não foi o único escritor a se afeiçoar a Beatriz. Em 2010, Tezza publicou Um erro emocional (Record, 192 páginas, R$ 47,90), um romance que se lê como a continuação daquele primeiro conto, que permaneceu inédito até o ano seguinte. Donetti bate à porta de Beatriz e se declara desajeitado: “Cometi um erro emocional. Eu me apaixonei por você”. Em 2011, a coletânea de contos Beatriz (Record, 144 páginas, R$ 47,90) narrava sete encontros da tradutora com personagens diversos, como um velho racista, uma senhora que guarda um segredo e um menino que faz aulas de reforço.

Não são poucos os escritores que costumam reciclar seus personagens. Autores de romances policiais acompanham o mesmo detetive ao longo de vários livros. Foi assim com Sherlock HolmesHercule Poirot Mario CondeRastignac e outros tipos franceses passeiam por vários tomos da Comédia humana, de Honoré de Balzac. Até Quincas Borba fez figuração em Memórias póstumas de Brás Cubas antes de ganhar um romance só seu. Depois dos contos e da longa narrativa dividida com Donetti, Beatriz estrela outro romance: A tradutora, que chegou às livrarias neste mês.

“A ideia central de A tradutora veio de uma sugestão de um amigo curitibano: ‘Por que você não escreve um conto com a Beatriz assessorando alguém da Fifa durante a Copa do Mundo?’”, diz Tezza. “Acabei acrescentando dois outros vagos projetos de contos que eu andava matutando – um assédio que Beatriz sofre e um episódio de cartas anônimas.” A tradutora narra os últimos capítulos do romance de Beatriz e Donetti. Ela não aguenta mais a melancolia rabugenta dele e está atraída por um sorridente editor paulistano que lhe deu a missão de traduzir Felip Xaveste, um barroco e conservador filósofo catalão que dispara contra MarxFoucault e o pensamento de esquerda. Uma carta e um telefonema interrompem a tradução de Beatriz. A carta, composta de letras recortadas de revista, traz a mensagem “Eu te amo” e nenhuma assinatura. O telefonema era da Fifa com um convite para Beatriz ciceronear e traduzir um alemão que viria a Curitiba inspecionar as obras da Copa do Mundo de 2014.

Beatriz esperava um bávaro gordo e bigodudo, mas circula pelas obras e pelos pontos turísticos curitibanos ao lado de Erik Höwes, um alemão atlético que planeja visitar um terreiro de umbanda. Enquanto ouve Höwes elogiar os esforços da Fifa no combate ao racismo, o discurso de Xaveste ainda ecoa em sua mente. O filósofo catalão acusa o mercado futebolístico, capitaneado pela Fifa, de reproduzir a corrupção, o clientelismo e a venda de ilusões que marcam a política de países subdesenvolvidos – como o Brasil. O escritor tende a concordar com as opiniões de seu personagem filósofo. “A Fifa apenas reproduz, em escala global, a corrupção da esquina. Nossa Copa foi caríssima, um 7 a 1 devastador”, diz Tezza, torcedor do Atlético Paranaense. “Xaveste aparece no texto como uma espécie de representação do pensamento conservador que, como uma onda cultural, vem crescendo em contraponto à exaustão de raiz marxista e do messianismo ideológico em geral”, diz. “Falar mal da Escola de Frankfurt e desancar o pensamento de Foucault e assemelhados me soou como blasfêmias saborosas numa era de papagaios.”

Tezza já tem outro encontro marcado com antigos personagens. A adaptação cinematográfica de O filho eterno, seu livro mais célebre, chegará aos cinemas em dezembro pelas mãos do cineasta Paulo Machline. Quanto a Beatriz, Tezza imagina que um dia Xaveste virá ao Brasil e precisará dos préstimos de uma tradutora. É provável que o filósofo catalão tenha um ou outro comentário a fazer sobre a política brasileira.


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