Folha de S.Paulo - Ilustrada
São Paulo, 23 de novembro de 2011


Cristovão Tezza faz rara incursão
nos contos em "Beatriz"


Autor de "O filho eterno" diz que evita textos curtos por não gostar de desperdiçar os personagens criados

Raquel Cozer

"Beatriz", que Cristovão Tezza lança hoje em São Paulo, é um livro de contos, mas também um tubo de ensaios.

Nele estão os estudos para dois outros títulos do autor. Um deles é claro para quem leu "Um Erro Emocional", o livro anterior do catarinense.

A personagem-título do novo livro é a protagonista do romance de 2010. Além dela, reaparece nos contos o romancista Paulo Donetti, com quem Beatriz divide as páginas de "Um Erro Emocional".

Isso tudo Tezza explica no prólogo da coletânea: as narrativas ali presentes, embora possam ser lidas de forma autônoma, surgiram durante o esforço de criação de personagens para o romance.

O outro exercício literário é o prólogo em si, como esclarece o escritor, 59, por telefone à Folha, de Curitiba, onde mora desde a infância.

"Estou concluindo um ensaio autobiográfico sobre a prosa, um livro não acadêmico. Estava com essas ideias na cabeça quando resolvi escrever o prólogo de 'Beatriz', abrindo uma discussão sobre a composição dos contos."

Previsto para sair em maio pela Civilização Brasileira, sob o título "O Espírito da Prosa", o próximo livro será uma espécie de "conversa com o leitor" sobre criação literária e a formação do autor.

Em "Beatriz", esse exercício traz informações importantes. O leitor fica sabendo, por exemplo, porque é raro ler contos de Tezza -em resumo, ele acha um desperdício criar personagens para usar em tão poucas páginas.

"Na minha política de criação de personagens, sou um escritor econômico, morrinha mesmo", escreve. A única grande incursão nessa seara foi em 1980, com "A Cidade Inventada" (CooEditora).

De resto, o autor de "O Filho Eterno", romance nacional mais premiado de 2008, escreveu dois ou três contos, para revistas como a "Pesquisa Fapesp" e a "Bravo!".

CAMADAS NARRATIVAS

Com dois personagens intimamente ligados ao ato da escrita -uma revisora de textos e um autor mais talentoso que bem-sucedido-, "Beatriz" tem parte de suas histórias inventadas por eles.

No decorrer do livro, os dois elucubram em cima do que dizem outros personagens, constituindo novas camadas narrativas. Tezza diz que isso foi intuitivo, embora não seja fã do expediente.

"Para o escritor contemporâneo, é meio inescapável tratar da construção narrativa no texto. Mas não gosto de fazer da literatura o tema da literatura, essa coisa pós-moderna típica. Busco homenagear o realismo."

O pé no realismo, aliás, pode até confundir o leitor. Por via das dúvidas, Tezza acha bom esclarecer: a visão altamente debochada de Paulo Donetti contra festivais literários no primeiro conto, "Beatriz e o Escritor", não corresponde ao pensamento dele.

Carência de "espaço" tira brilho das narrativas do escritor

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Podemos considerar o mais recente livro do escritor Cristovão Tezza como uma coletânea de contos ou como uma perseguição a uma personagem.

Criada com o nome de Alice no conto "Beatriz e o Escritor" (originalmente publicado como "Alice e o Escritor"), a personagem da jovem revisora de textos foi pouco a pouco, em narrativas subsequentes, ganhando corpo, adquirindo traços biográficos e psicológicos, assumindo uma densidade de que não dispunha, misteriosa com seus olhos verdes brilhantes.

Enfim conquistou autonomia a ponto de destacar-se como personagem de romance -o idílio claustrofóbico de "Um Erro Emocional"- em dueto com a figura do escritor Paulo Donetti.

Assim, Tezza foi se apropriando de Beatriz/Alice, bem como do amargurado escritor Donetti (inicialmente Antônio). O autor mudou os nomes, mas continuou a perseguir-lhes a essência, a perscrutar-lhes o enigma.

Donetti é o narrador de duas histórias desta coletânea, em que Beatriz surge como objeto de cobiça misturada a um desejo de vingança e, depois, como lembrança melancólica. Nos dois casos ela figura mais como um fantasma de suas obsessões do que como um ser autônomo.

Quando ela obtém status independente, porém, nos outros contos, algo acontece que a faz titubear. Lidas na sequência, as histórias parecem estudos de Tezza para a construção da personagem. Certas situações se repetem; atitudes, idem. Beatriz como que derrapa.

São contos bons para serem lidos em separado, no seu oferecimento de humor tácito, evolução segura de enredo com alguma surpresa de caráter equívoco bem guardada para o leitor. Mas perdem o brilho quando vistos no conjunto.

Beatriz, igualmente, não evolui muito, digamos, entre "Aula de Reforço" e "Beatriz e a Velha Senhora" ou "Um Dia Ruim". A exceção é a última narrativa, "O Homem Tatuado". Não só esse relato é mais alongado, quase uma pequena novela, como Beatriz ali aparece mais inteira, menos esquemática.

Salvo engano, não seria tanto a dificuldade com a criação de personagens o que de fato desautoriza Tezza a frequentar o conto, mas a carência de "espaço".

Dê-lhe terreno maior e ele reencontra o seu norte artístico, quer seja na força das descrições, quer seja na fluidez narrativa, quer seja no vislumbre de certo viés vertiginoso, quer seja na introdução de outros personagens verdadeiramente vívidos. Ganha assim o autor, ganha também o leitor.

 


voltar