O GLOBO
Rio de Janeiro, 2 de maio de 1998


A obra aberta de Cristovão Tezza


Wilson Martins

O escritor curitibano atinge sua maturidade como romancista em
"Breve espaço entre cor e sombra"


Pode-se pensar que, com "Breve espaço entre cor e sombra" (Rio: Rocco, 1998), Cristovão Tezza chega à sua, maturidade de romancista, situando a criação de personagens, os perfis psicológicos, a intriga e as peripécias no plano intelectual da grande literatura, tudo estruturado em complexa arquitetura narrativa. O leitor não chega a saber se o protagonista era, de fato, um pintor medíocre e ilustrado ou, ao contrário, um gênio sufocado pelo autoritarismo do mestre que, afinal de contas, parecia movido mais pelo desejo subconsciente de neutralizar um rival do que por sua real superioridade artística.

O romance tem início simbólico com o enterro do mestre imperioso, quando entra em cena a figura enigmática de Richard Constantin, que tanto pode ser um colecionador erudito e homem de incomparável sabedoria artística quanto um vigarista, como o qualifica a personagem tão inescrutável quanto ele e que ficamos conhecendo apenas pelo apelido depreciativo de Vampira - com que o primeiro retruca, sem saber, à classificação insultuosa com que ela mesma o havia identificado em conversa com o narrador.

Aliás, a verdadeira personalidade de todos os personagens jamais se esclarece, sendo esse o elemento estrutural que, evidenciando a finura técnica do romance, prende o leitor até às últimas páginas - onde tudo continua na mesma indecisão psicológica e factual. Nessas perspectivas, Cristovão Tezza escreveu a "obra aberta" paradigmática, e tanto mais aberta quanto ficou, na verdade, com uma ponta solta, sem nada revelar sobre as previsíveis conseqüências do roubo cometido contra Constantín, o que é inverossímil, tratando-se de quem se tratava.

Entremeada na intiga, há uma história de amor epistolar entre o protagonista e a desconhecida com quem se encontrou por acaso na escadaria do Museu Metropolitano de Nova York - italiana involuntariamente envolvida, como intermediária, na venda de ma falsa obra de arte ao aludido Constantin, que, certamente percebendo o logro, reservava-se para qualquer oportuna extorsão contra a mãe do narrador. Acontece que ela, residindo nos Estados Unidos como comerciante de objetos de arte, foi a inocente (?) vendedora. É uma trama delabirintos que só aos poucos, e de surpresa em surpresa, acaba se esclarecendo para o leitor.
Constantin era, de resto, uma figura fascinante: "O quase lendário Richard Constantin (mas ele já não tinha desaparecido?), uma mistura de marchand e de pirata que há algum tempo habitou o imaginário magro das artes plásticas da cidade, é como a visita de uma velha senhora que há de nos redimir a todos: nas conversas de bar, tanto seria o falsificador que passou três, quatro, às vezes nove anos numa cadeia de Paris por traficar Picassos que ele mesmo pintava, quanto o Midas capaz de transformar um pintor de paredes num assombro de bienal, em geral com vida curta porém lucrativa - para ele".

Essa biografia explica a extraordinária conversa que mantém com o narrador à saída do cemitério: "Um artista não tem escrúpulos. Caráter, deve ter sempre. Caráter é aquilo que transparece no que ele faz, seja música, teatro, pintura, dança ou mesmo ciência, que, afinal, é a mais sofisticada das artes, porque mais que todas as outras tem a aparência viva da verdade (...)"
É um cínico, mas um cínico com a coragem de desmistificar as verdades aceitas: "A arte é sempre uma aposta de alto risco, e sem volta. A moralidade é irrelevante se, e apenas se, pra ser matematicamente preciso, a obra for grande e o artista tiver talento. Não serve meio talento. Ou três quartos de talento. O dom deve ser integral, um cheque em branco de Deus. É uma aposta pesadíssima, porque, afinal, quem nos garante alguma coisa?"

Esse é o nível estilístico do romance, servindo de constraste as páginas lancinantes que a italiana escreve depois da separação (o encontro durou uma tarde, entre a visita ao museu e o vôo noturno que a reconduziu a Roma). Ela mesma é uma mulher infeliz, abandonada pelo marido e vivendo a dupla recordação paralela dos dois homens. Claro, há nas suas cartas algum excesso de sentimentalismo e certa insistência nas rememorações, mas nada lhe tira a dignidade de um belo episódio romanesco.
Sem qualquer razão aparente, o apartamento do narrador foi assaltado de maneira tanto mais estranha quanto nada foi roubado: "A televisão, o vídeo. Guarda-roupa aberto, gavetas remexidas (...) aparentemente não faltava nada", nem mesmo no atelier, onde tudo continuava no lugar. Num segundo assalto, desta vez no atelier, o narrador é ferido por um desconhecido, que foge rapidamente (tudo se passou no escuro). Os fatos serão esclarecidos já para o fim do romance, reincluindo, por inesperado, o velho mestre no circuito narrativo, à primeira vista sem ligação com a história, agora encaminhada para o desenlace sob as espécies de intrigante romance policial.

É de notar a filigrana de humor que percorre todo o romance, nomeadamente no desenho dos caracteres e no comportamento do protagonista. Assim, por exemplo, quando ele e a Vampira decidem jantar num restaurante: "Quando o garçom depositou diante dos meus olhos aquela peça magnífica mergulhada em alho (o detalhe que julguei importante), imaginei uma imensa instalação de bifes em fila sangrando nas rampas da Bienal de São Paulo, talvez homenagem à vaca louca Inglesa (...)".

Mas, à lembrança do grande mestre falecido, ele se exalta e perde o controle: "Ele foi um grande artista. Nos últimos anos não fez mais nada que prestasse (...). A Vampira fixa nele os olhos assustados, tentando descobrir em que animal (e latindo cada vez mais alto no restaurante fino) eu me transformava à simples lembrança de Aníbal Marsotti (cuja mão tremia ao compulsar os desenhos do discípulo), e a minha mão tremeu tanto que derramei vinho na minha camisa, de alto a baixo, e continuei falando (...). Evitei olhar nos olhos da Vampira enquanto eu passava o guardanapo na minha camisa encharcada, cercado por três garçons patetas que tentavam pensar alguma coisa em auxilio do cliente idiota (...)".

Este romance é uma criação de estilo nos dois sentidos da palavra: o estilo narrativo, a estruturação dos episódios e suas correspondências "em rosácea", e o estilo da escrita, a elegância da língua e o alto gabarito de alguns diálogos - sem excluir o monólogo lancinante que são as cartas da italiana sofrendo desespero do abandono e da solidão e vivendo a nostalgia dos amores para sempre perdidos.



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