Jornal INFORMATIVO DA UBE
União Brasileira de Escritores (SC)

Outubro de 1999 - página 9



DE PERTO E DE LONGE

Imitação da Arte

Regina Carvalho

Cristovão Tezza é lageano e mora em Curitiba desde os 8 anos. Cristovão Tezza tem, pois, dupla nacionalidade, o que o torna, na verdade, um estrangeiro em ambas as partes.

Tato Simone é um pintor de Curitiba. Ser artista no Brasil, e ainda por cima morar em Curitiba, cidade organizada, bonita e limpa, mas fria e enrustida, parecem duas desgraças grandes demais para alguém carregar pela vida. No entanto Tato Simone não precisa de sua arte para sobreviver, sustentado que é pela mãe rica, e há mais de um ano trabalha em quadro síntese dessa sua posição frente à arte: Immobilis Sapientia (Sabedoria Imóvel), e desenvolve confusas reflexões sobre a inutilidade da arte, enquanto se debate num emaranhado de sentimentos confusos, como confusas são suas relações familiares, seu ressentimento contra a mãe, o pai, os amigos e, especialmente contra seu mentor, o artista cujo enterro (magistralmente desenvolvido no livro) abre a narrativa.
O discurso metalingiiístico é sempre um discurso perigoso, na medida em que se considera, a partir dele, que o autor fala de si mesmo. No caso da literatura, vai-se dizer que a personagem que desenvolve tais consideraçoes é um alter-ego do Autor, e ali foi colocada especialmente para servir de veículo à opinião dele. É preciso não conhecer Tezza para fazer uma confusão tamanha com aquilo que já é, por natureza, confuso, e confundir as reflexões confusas de Tato Simone com a clareza meridiana que normalmente norteia o raciocínio de seu criador.

A discussão sobre a utilidade da arte data de, pelo menos, Platão; é uma discussão cotidianamente retomada, desde Platão ou desde antes dele, por artistas e universitários, sem que se chegue - e jamais se vai chegar - a uma conclusão definitiva. Na verdade, tal discussão não passa, a meu ver, de uma justificativa para que, em se reconhecendo a importância da arte - melhor: a absoluta necessidade que a espécie humana tem da arte - possamos desculpá-la por ser, como disse o poeta pantaneiro, Manuel de Barros, sobre o poema, um inutensílio. Mais que isso: para que possamos extrair seu valor máximo justamente daí, do fato de ser um inutensílio.

Na narrativa de Tezza as vozes cìas personagens se mesclam para levar à frente a discussão por seus anseios máximos, de chegar a uma compreensão da arte e de seu papel. Outra inutilidade, é claro.

A voz confusa, curitibana, essencialmente masculina de Tato Simone vai se mesclar, ao longo desse percurso narrativo, com as cartas da italiana - seu contraponto essencial, expresso pela voz européia, feminina, clara, em tudo e por tudo o discurso de uma outra facção, o discurso daquele que é sempre o estrangeiro. Mais do que estrangeira por ter outra nacionalidade, ou estrangeira por ser de outro sexo, como somos, é estrangeira por ser de outra mentalidade, em um universo em que outras mentalidades não conseguem penetrar, especialmente porque o demérito atribuído ao "ser feminino" não consegue ser equilibrado pelo mérito extremo atribuído a - "ser europeu".

Borges dizia que fazemos nossos antecessores. Em Tezza, para que ele chegue a ser Tezza, há duas influências enriquecedoras e enriquecidas por suas criações - de um lado, a ironia machadiana, eivada de crueldade e dor; de outro, o discurso cheio de suspense de Rubem Fonseca, o discurso do mundo incompleto, que leva o leitor junto consigo, na tentativa de criação de uma obra que seja comum a ambos, leitor e narrador.

Falar de pintura, usar o visual e a cor dessa arte, em uma obra literária; usar quadros como pretexto para discutir a arte a partir da linguagem artística da literatura, e não a linguagem do discurso teórico, eis o genial deste livro de Tezza. A complexidade do tema, tornada mais complicada ainda pela abstração que exige que se incorpore à sua análise, extremamente prazerosa para os que se ligam ao métier, é tornada mais prazerosa ainda pela maestria com que Tezza maneja seu instrumento, a língua portuguesa.

Não se está, na verdade, falando de arte em geral: está-se, sob este pretexto, falando de literatura. A arte é, para Aristóteles, imitação; indo além de mestre Ari, podemos concluir, a partir do discurso me-talingiiístico de Tezza, que a literatura é a imitação da imitação, o avesso do avesso, sem contudo chegar jamais a ser um simulacro. Percorrer este caminho vale a leitura; valerá sempre.


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