FOLHA DE S. PAULO - CADERNO MAIS!
São Paulo, 25 de julho de 1999


Ilusões ainda existentes

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Especial para a Folha

O caminho que leva Cristovão Tezza de volta a "Ensaio da Paixão" é necessariamente de revisão. Mais de dez títulos depois, o que fica dessa visão romanesca dos anos 70, o que do entusiasmo inicial no escritor experimentado? Romancista catarinense radicado em Curitiba, professor de linguística na Universidade Federal do Paraná, a produção de Tezza não é pequena. Construiu, aos poucos, um narrador urbano, cindido entre a consciência da criação, compulsão e busca sem fim, e os compromissos da vida, no limite, também uma construção, ficção vivida.

Nos seus melhores momentos, como em "Trapo" (1988), "O Fantasma da Infância" (1994) ou "Uma Noite em Curitiba" (1995), a forma dividida da exposição (um professor examinando os papéis de um poeta marginal suicida, como em "Trapo"; um filho ajustando contas com a memória do pai, também professor, cuja vida ruiu, a partir de um punhado de cartas, em "Uma Noite em Curitiba") joga luz sobre a imperfeição de ambas. É esse gosto pelo esquadrinhamento da divisão interior que põe em movimento o Tezza escritor.

Na reedição de "Ensaio da Paixão", romance de juventude, escrito no final dos anos 70, já como balanço de vivências recentes, rever implica, para leitor e autor, certa dose de ironia, de isenção crítica produzida pelo tempo que permita considerar objetivamente o que antes parecia tão acertada expressão de uma verdade, pessoal, acabada, cabal. A idéia de encapsular a vida desconjuntada do país na imagem de uma encenação coletiva, para público nenhum, da Paixão de Cristo, numa ilha catarinense ameaçada pelo arbítrio e paranóia do poder constituído à força, precisou de um tanto de ingenuidade sincera para ser levada a cabo. Ingenuidade que duplicava a sinceridade bem-intencionada dos que viveram a época, certos de que a nau dos loucos, a crítica corrosiva da arte, do ócio, da recusa em compactuar, da opção pela marginalidade e pela força dos laços comunitários eram, mais que descobertas de uma geração, invenções de caminhos seguros para uma sociedade mais livre e realizada.

Meia verdade. A apatia e o recalque conhecem muitas faces, meios de assimilar, domesticados e inofensivos, o gesto de protesto, a rebeldia pela boa causa. Se, ainda assim, ela não perde sua razão, em retrospecto, não há como evitar certo gosto melancólico, do qual o ridículo não está totalmente isento, na reconstrução a posteriori dos dias em que as ilusões ainda não estavam perdidas. A ameaça de sentimentalismo só pode ser neutralizada pela consciência crítica, da qual o humor é uma forma.

No "Ensaio da Paixão", a pretensão à totalidade das metáforas empregadas (a ilha como alegoria do país, a criação coletiva como reação à ordem unida do poder militar, o arsenal de tipos recompondo em escala menor o mosaico da sociedade, a vida dos atores como reencenações do destino de queda e sofrimento da humanidade, paixão) carregou nas tintas a ponto de converter o romance em caricatura. As pitadas de realismo mágico, também traço de época, conferem-lhe apenas uma espécie de ironia postiça, que finge ser ironia o distanciamento que deveras sente, artificializando-o.
Nisto, o livro, lido em retrospecto, naufraga no tempo, datado. A moldura da mitologia bíblica atualizada não convence, os tipos aparecem engessados em figuras de papel: um demônio tecnocrata, o pescador e seu anjo da guarda, um Antonio Conselheiro local, meia dúzia de pequeno-burgueses, corpos estranhos, o escritor "vendido" e bem-sucedido, militares ensandecidos, torturadores ambiciosos. Mostra um escritor em gestação, muito impregnado pela urgência de refletir sobre a experiência histórica mais imediata e, apesar da distorção alegórica, excessivamente colado a ela, dilema que seu autor e a ficção contemporânea brasileira ainda não superou de todo.

Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na
Universidade Estadual de Campinas e autor de
"O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).



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