Jornal do Commercio - Caderno C
Recife, 11 de novembro de 2007



História de amor eterno de Cristovão Tezza

Talles Colatino
tallescolatino@gmail.com

Escritor catarinense reúne forças para levar à literatura, sem cair no sentimentalismo, a sua experiência de ser pai de Felipe, hoje com 26 anos e portador de Síndrome de Down

O escritor catarinense Cristovão Tezza abriu um capítulo da sua vida, talvez o mais difícil de todos. A partir dele, desdobrou os outros vários que compõem seu novo livro, lançado recentemente pela editora Record. O filho eterno retrata a relação do próprio Tezza com seu filho Felipe, hoje com 26 anos, portador de Síndrome de Down.

No livro, o pai, como o personagem principal é apresentado,trava uma batalha consigo e com a sociedade que, há quase 30 anos atrás, tinha pouco conhecimento sobre a disfunção. “Esse foi um livro em que lutei pelo ‘não sentimento’ narrativo, no sentido de não me entregar ao aspecto sentimental da trama, que é poderoso, praticamente irresistível. Claro, é preciso distinguir aqui o narrador do personagem, o que eu tentei manter ‘frio’, o tempo todo, foi o narrador. Era fundamental que essa distância se mantivesse, ou eu estaria à mercê do personagem, e aí o livro não levantaria vôo, por assim dizer.”, comentou Tezza.

Mesmo distante do sentimentalismo exacerbado, as reações e as transformações que o pai vai sofrendo desde o nascimento do filho até o seu desenvolvimento e inserção no mundo chamam a atenção pela sua intensidade. Os pensamentos às ações do pai, somados a força do enredo e a densidade libertária da prosa de Tezza transformam O filho eterno num livro pulsante, vivo.

“O tema do livro é naturalmente reflexivo, transcende os limites do enredo, e assim obrigou a narração a abrir muitas comportas, desde a retomada biográfica do pai até as reflexões mais duras sobre a realidade que ele viveu. Talvez daí venha essa idéia de ‘libertação’ que o romance sugere”, diz o escritor.

Entre o romance a autobiografia, os acontecimentos que o livro relata vão convergindo para refletir o amadurecimento dele ao lidar com o filho. A situação faz o leitor questionar se as atitudes do personagem condizem com, no caso, do próprio Tezza. “ Eu acredito que não, embora o resultado final, 27 anos depois, seja o mesmo. Há sempre um abismo entre o evento da vida, que é o acontecimento aberto do cotidiano, o nosso dia-a-dia, e a representação literária. Nesta, a vida é caprichosamente recortada, selecionada, escolhida e emoldurada, transformando-se em objeto, em algo que se vê de todos os lados, com uma nitidez que o simples ‘viver’ jamais nos dá. E, é claro, esse objeto literário não é em si a vida, mas a sua representação reflexiva - é na verdade um olhar (entre milhares de outros possíveis) sobre a vida. Assim, o desenvolvimento do personagem tem um grande grau de autonomia, obedece à lógica interna que a própria narrativa foi criando”, explicou o autor.

Ao comentar sobre a dificuldade de romancear a sua própria realidade, Tezza acredita que esse trabalho é relativo e depende do temperamento e da inclinação do escritor sobre a sobre a obra que deseja criar. “Eu acho muito mais difícil romancear a realidade, partir do dado biográfico para daí fazer matéria ficcional. O risco de você apenas fazer uma confissão pessoal, de não sair dos limites da vida pessoal, é muito grande. Não é fácil transformar um fato da própria vida em objeto”.

Pela exposição que o livro traria, Tezza confessa que adiou a sua publicação. E mais que a publicação, idéia de escrevê-lo. Elogiado pela crítica e já apontado como a melhor obra do catarinense, O filho eterno tem o mérito de conseguir se mostrar um raro equilíbrio alcançado por um escritor: casar uma temática passional a uma poética densa e envolvente. “Começo lentamente a me ‘livrar’ do romance, o que sempre acontece comigo depois de publicar meus livros. Com esse, esta separação está demorando mais pelo impacto que o romance está tendo entre os leitores, mas felizmente já consigo vê-lo um pouco mais do lado de fora, digamos assim. De fato, eu temia que a literatura do romance não fosse percebida, eclipsada pelo tema, mas isso não aconteceu. E também a exposição pública, se O filho eterno fosse lido apenas como depoimento pessoal, o que também não aconteceu. Hoje estou muito tranqüilo quanto a isso. Sei que escrever é uma atividade dura, difícil, áspera – não temos de esperar nada de ninguém, a não ser da própria cabeça. Mas posso dizer que O filho eterno me deu uma profunda e rara alegria como escritor”, confessou.

Sobre grande desafio de um escritor que arrisca contar, ou romancear, que seja, um fato da sua vida, Tezza respondeu: “O mesmo de qualquer outro livro: não naufragar na travessia. E não permitir que o elemento íntimo, depois de escrito, continue apenas pessoal. O objeto da literatura são os outros”.

Sem precisar citar a palavra amor, Tezza nos apresenta a evolução desse sentimento, de pai para filho, que se eternaliza a cada barreira desconstruída acerca da situação do filho. O filho eterno é um livro sobre seu filho Felipe, mas não escrito, diretamente, para ele, e sim para nós. Afinal, como Tezza se define: “eu sou, em boa medida, os outros”.

Apesar dessa cristalização da relação construída pelos dois personagens, o eterno citado no título cabe, unicamente, à condição do filho. “Só quem tem um filho especial sabe o que quer dizer esse eterno. É uma eternidade laica, concreta, visceralmente amarrada à vida cotidiana”.

Com a editora Record, Cristovão Tezza comemora o relançamento de livros como Trapo, que o projetou nacionalmente em 1988, O fantasma da infância e Aventuras provisórias. E, em primeira mão, o autor revelou que O filho eterno acaba de ser vendido para a Itália e para a França. E que há negociações avançadas com outros países.

» O filho eterno (Cristovão Tezza): Editora Record. R$ 34 (preço médio).