Gazeta do Povo/Blog SOBRETUDO
Luiz Claudio de Oliveira
27 de agosto de 2007

 

O pai, o tímido, o futebol e o tempo no "Filho eterno" de Cristovão Tezza

Luiz Claudio de Oliveira

Li “O filho eterno”, do escritor Cristovão Tezza. Muito já foi escrito sobre este livro, principalmente sobre a coragem e a sensibilidade do autor. Coragem pela exposição de sentimentos que normalmente ficam guardados como segredos irreveláveis dentro de cada um. Sensibilidade pela escrita limpa e erudita ao mesmo tempo e pelo carinho e a convivência com o filho. Como todo bom livro, este se abre para inúmeras possibilidades de leituras. Queria destacar aqui alguns outros pontos abordados na obra que me atingiram como pai, como tímido e como amante do futebol. E ainda dar também um pitaco na relação do homem com o tempo. Tentando não filosofar muito, vamos a eles:

O escritor e a paternidade

O escritor que é, ao mesmo tempo, personagem do livro – é um romance, não um livro de auto-ajuda - conta suas dúvidas, tristezas e alegrias no relacionamento com o filho Felipe, portador da Síndrome de Down. É claro que as preocupações e dúvidas aumentam quando o filho tem necessidades especiais, mas é interessante notar como na maior parte das vezes a incerteza do pai escritor pode ser estendida aos pais em geral, principalmente em relação ao primeiro filho ou ao filho único. Ensinamentos, convivência, repressão, imposição de limites, camaradagem, brincadeiras, preferências artísticas, ou esportivas, hábitos. Não há ensaio para a vida, como diria Fernando Pessoa. Tudo vai se construindo ali, no ato, na hora em que está acontecendo. Muitas vezes erramos tentando acertar. Mas tudo é aprendizado, tudo é experiência, mesmo os acontecimentos mais desagradáveis nos ensinam alguma coisa.

Em uma situação de normalidade, todos os pais querem o melhor para seus filhos, mas por vezes o que é melhor para o pai não necessariamente é melhor para o filho. Como saber? Vivendo e aprendendo. As dúvidas aparecem a todo momento, mas não devemos, nós pais, deixar que elas nos paralisem. Muito menos devemos deixar que essas incertezas façam com que percamos a oportunidade única da convivência adorável com este pequeno ser que se desenvolve sob nossos cuidados. Ao contrário do que pensava antes de ser pai, as crianças também nos ensinam muito e constantemente. Por isso e por todo amor e carinho envolvidos, esta convivência é uma troca por demais gratificante, mesmo que permeada por dúvidas e algumas crises.

O livro nos mostra exatamente isso e eu agradeço, Cristovão.

O escritor e os tímidos

O livro coloca nós, os tímidos – e principalmente os pais tímidos –, em evidência e praticamente nos explica ao mundo. Muitos escritores fizeram livros em que os tímidos são retratados como personagens de destaque. O próprio Cristovão tem vários livros assim, com pessoas que estão quase sempre deslocados, à margem da realidade e que só conseguem se relacionar com o mundo através de sua arte ou suas habilidades, que são muito mais internas do que externas. O poeta Carlos Drummond de Andrade fez deste deslocamento do mundo um dos grandes motes de sua obre desde o primeiro poema (“vai, Carlos, vai ser gauche na vida”). Os tímidos são muito mais – ou se sentem muito mais – observadores do que participantes e se acham especiais e até, de alguma maneira, superiores por ficarem em seu mundinho e não se misturarem – pois também, quase todos, são orgulhosos, presunçosos. “O filho eterno” é especial porque vai além do simples relato ou retrato e nos traz uma reflexão sobre essa condição. Eu, por exemplo, me identifiquei muito em várias passagens. Por exemplo: estar quase sempre refletindo a respeito e de alguma coisa em vez de estar participando; a dificuldade de manter a atenção sobre um todo de um discurso ou de uma ação e se perder no vasto mundo de um detalhe; a capacidade de fantasiar um mundo paralelo, quase perfeito que não resiste a mínimo sopro de realidade, e por aí vai. O livro é um tributo à timidez. Obrigado por isso também, Cristovão.

O escritor e o futebol

Ao fim de “O filho eterno”, Cristovão Tezza dedica algumas páginas a falar do futebol. São palavras sobre a total inutilidade aparente deste esporte que arrebata bilhões de pessoas no mundo todo. Inútil, mas que explica um mundo de coisas e serve de apoio ao filho Felipe para o aprendizado, a convivência social e a apreensão e compreensão de sentimentos confusos para qualquer um, tenha ou não Síndrome de Down, como é, por exemplo, a frustração. Ao ler as palavras de Tezza – não estou com o livro aqui, à mão, e não me atrevo a repeti-las de memória – sobre essa coisa nenhuma que é o futebol, sobre a inutilidade dessa prática, seja jogando ou assistindo, e que corre em paralelo com a realidade, lembrei imediatamente da já tão filosofada “inutilidade da arte”. Não sei se foi por querer ou “sem querer querendo”, mas quase tudo o que Cristóvão escreveu sobre o jogo e a obsessão por assistir uma partida no estádio ou na televisão pode ser aplicado à arte. A diferença é que a arte é muito mais aceita como expressão cultural, enquanto o futebol (o esporte em geral) é discriminado pelo mundo cultural como algo menor. Estou pensando isso agora, mas quando chegar em casa vou ao livro e substituirei a palavra futebol por arte toda vez que ela aparecer no livro para ver no que dá.

Mesmo sem essa elocubração comparativa do parágrafo aí de cima, a descrição e reflexão de Tezza sobre o futebol são das melhores que já li na vida. Mais uma vez, obrigado, Cristovão.

O escritor e o tempo

Há romances sobre o tempo. O principal deles talvez seja “A montanha mágica”, de Thomas Mann, em que o escritor alemão consegue não só no conteúdo, mas também na forma, tornar o tempo quase palpável e nos mostrar que ele pode se adequar a cada situação da vida, passando mais rápido ou mais devagar conforme algumas dessas situações. Ou, ao contrário, o tempo determina certas momentos da vida. O romance de Tezza é também sobre o tempo e seu peso implacável nas costas dos pais. Antes dos filhos, o tempo era um, mais transparente, mais dócil, quase companheiro. Depois dos filhos, o tempo se torna opaco, selvagem, um desconhecido que nos obriga a seguirmos e obedecermos, sem direito a muitos questionamentos. Lendo “O filho eterno”, a partir do título compreendi melhor essa angústia de urgência que se abateu sobre mim nos últimos anos. Mais uma coisa que aprendi e que merece um novo agradecimento.

Muito obrigado, Cristovão.