Caótico

Blog de Inácio França
17 de dezembro de 2011

O filho eterno

Inácio França

Afundei na rede sob o peso de uma bigorna imaginária. E ainda estava na página 27 do livro. Mais uma página, mais outra e outra, agora mais devagar para não me distrair, para não deixar escapar uma vírgula sequer.

A respiração sempre pesada. A custo, avancei até o final do capítulo. Mais adiante não consegui ir. Pelo menos não naquela noite.

Abandonei o livro e a rede com a falta de ar de quem acaba de levar um soco no pé da barriga, na boca do estômago. Só retomei a leitura no dia seguinte e não a larguei mais.

Há tempos um livro não entra nas minhas veias e não sai dos meus pensamentos como O filho eterno, de Cristovão Tezza. Em poucas páginas, soube que estava lendo um romance fundamental, um clássico publicado há menos de cinco anos.

Do autor já tinha ouvido falar dos seus prêmios, do seu nome sempre presente na programação de tudo quanto é evento literário. De tanto folheá-lo em livrarias de aeroportos, acabei mergulhando de cabeça exatamente no seu livro mais premiado. Voltei à tona com a sensação de que há justiça nessas premiações.

Como é possível constatar nas dezenas de resenhas, críticas e sinopses que é possível encontrar na internet, Tezza converteu em literatura sua experiência pessoal a partir do nascimento do seu filho com síndrome de Down.

O romance é narrado em terceira pessoa, recurso técnico que permitiu ao autor manter o narrador distante de sentimentalismos. Ao longo do relato, o leitor acompanha o amadurecimento do pai autor/personagem e da sua relação com o menino. Essas informações também se repetem nos sites que encontrei. Mas, cá entre nós, tudo isso não diz muito de um livro que me deixou do jeito que deixou.

No pai ansioso, prestes a descobrir que papel deveria desempenhar como pai e como marido da mulher que acabou de parir, me vi há exatos 18 anos, quando Pedro nasceu, às 9h de um 18 de dezembro.

No sujeito que sente-se sempre deslocado, claustrofóbico num trabalho e numa vida que não é a sua, me vi nos últimos 10 anos, enclausurado em reuniões e mais reuniões que jamais me interessaram, apesar do meu fingimento.

Nos trechos em que o pai se percebe como um espelho do filho, um homem inseguro, incompleto em tudo que faz, com dificuldades em mudar de direção, de abstrair e fazer as coisas de outro modo, cheguei a anotar ao lado, de lápis: “Esse cara tá dentro da minha cabeça”.

Rabisco semelhante ao que, agora, existe em meu exemplar nos trechos em que o narrador descreve como se refugiava da própria insegurança no humor ou no discreto sentimento de superioridade de quem leu um bocado de coisas.

A opção de não escrever em primeira pessoa permitiu a Tezza que se expusesse ao extremo, com uma coragem sem igual. Sua linguagem é crua, sem qualquer resquício de autopiedade, pieguice nem culpa. Ele revirou as vísceras de sua dor e as expôs como literatura.

Antes da publicação, ele temia que seu livro fosse encarado como uma autoajuda para filhos de pais especiais (clicando aqui você assiste a um vídeo em que ele revela isso). É preciso muita má-vontade para reduzi-lo a apenas isso.

Felizmente os críticos literários e as comissões julgadoras também foram atingidas na boca do estômago, como prova 0 artigo de Marcelo Coelho, na Folha de S. Paulo que encontrei em minhas chafurdações.

Ao “dar nome às coisas” com pontaria certeira, Cristovão Tezza proporciona aos seus leitores a possibilidade de se reconhecer e crescer junto com seu pai-personagem. Foi assim que saí da leitura, sentimento que, em anos recentes, lembro de ter me tomado ao ler Crime e Castigo na tradução de Paulo Bezerra e, depois, A trégua, de Benedetti.