Entrelivros
Edição 29 - setembro de 2007


A brutal descoberta da normalidade

JOSÉ CASTELLO

Em narrativa hábil e realista, Tezza expõe o complexo relacionamento de um pai com seu filho Down

Talvez a intrigante classificação criada por Truman Capote para definir seu A sangue frio, "romance de não ficção", ajude a explicar O filho eterno, o novo ro­mance de Cristovão Tezza. Talvez não. Na classificação de Capote subentende-se um debruçar sobre o mundo externo, de fundo jornalístico. No livro de Tezza, ao contrário, a investigação é interior, o autor indaga não ao mundo fora de si, mas a si mesmo.

Tezza prefere dizer que seu livro é um "romance brutalmente autobiográfico". Talvez seja melhor. Romances autobiográficos existem muitos. O advérbio "brutalmente", contudo, faz a definição dar um salto. Inclui dor extrema e, sobretudo, incorpora a violência nesse movimento doloroso do voltar-se a si.

O filho eterno desafia nossas idéias habituais a respeito dos romances. Conta a vida de um homem que, aos 28 anos de idade, ainda inseguro de que seja (ou de que será) um poeta, tem uma notícia brutal: a de que seu primeiro filho, Felipe, que acaba de nascer, tem a síndrome de Down.

A notícia o horroriza, e de não esconde esse sentimento. Aquela foi, afirma, "a manhã mais brutal de sua vida". O sonho do primeiro filho traz a nódoa da "anormalidade". Algo "para sempre" - o que o leva à dura reflexão "de que algumas coisas são de fato irremediáveis". O último limite da inocência, conclui, está ultrapassado. Voltou a nascer junto com o filho.

"Aquela criança horrível já ocupava todos os poros de sua vida", continua, sem adoçar a brutalidade do que viveu. Mas O filho eterno não é só o relato da luta fracassada de um pai para normalizar o filho. É também a história da luta de um homem para se tomar "normal". A negação da poesia, que exige a idéia do sublime, e o desvio para o terreno mais sólido da prosa, indicam isso também.

Atordoado, o pai sai em busca de respostas científicas. E descobre que as pessoas com Down - os "mongolóides", como ainda se dizia - não existem para a história. "Não há mongolóides na história, relato nenhum - são seres ausentes", conclui.

Mas, ao voltar-se para si, constata que ele também, o pai, transita numa zona cinzenta entre o ser e o não-ser. "Penso que sou escritor, mas ainda não escrevi nada", admite. Tudo está para ser feito.

Sob "o peso medonho do instante", no qual o destino todo se concentra, entende que precisa fazer alguma coisa daquilo que é. O filho eterno é o relato não só da busca de um sentido que estabilize a dura existência do filho, mas de uma fronteira que empreste sentido a sua própria vida de pai. Um freio que o salve de desejar o que não existe, que o livre das ilusões.

Espelhando-se no filho, sua relação com a literatura também entra em crise. "Eu não posso ser destruído pela literatura; eu também não posso ser destruído pelo meu filho - eu tenho um limite", constata. A descoberta do limite se torna não só a possibilidade da literatura, mas a possibilidade da própria paternidade. O filho Down, no fim, é sua salvação.

Na série de descobertas atordoantes, revela-se que não é só o filho que depende dele, pai, mas que ele também depende brutalmente do filho. "Só descobriu a dependência que sentia do filho no dia em que Felipe desapareceu pela primeira vez", relata. E, atônito, descreve: “O mesmo filho que ele desejou morto assim que nasceu, e que agora, pela ausência, parece matá-lo”.

Com habilidade, Tezza mistura a narrativa da formação de Felipe com a narrativa de sua própria formação. Ambas se mostram incompletas, avançam em direções imprevistas, desmentem expectativas. Mas é a partir de desvios e surpresas que algo se deve construir. As vidas do filho e do pai se interpenetram, constituindo aquilo que, em palavras simples, chamamos de amor.

No fim das contas, as dificuldades estão, como sempre, nas palavras. Não só o filho "deficiente", mas ele também, pai "normal" tem dificuldades com a linguagem. Diante dela, o real sempre se esquiva. "O pai começa a perceber que todas as crianças especiais são diferentes umas das outras de um modo mais radical do que no mundo do padrão de normalidade." No fim, entende, com toda a dor, que é a idéia de normalidade que os impede de ser.



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