Jornal do Brasil - Caderno Idéias
Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2002


Confissões de um adolescente

Em literatura sem modismos, romance de Cristovão Tezza passeia pelo submundo urbano nos anos 60

Adriana Lisboa

No premiado romance Breve espaço entre cor e sombra, do catarinense Cristovão Tezza, um personagem afirma que ''as obras de arte também obedecem às leis do DNA. Um pedaço contém potencialmente todo o resto''. Trata-se de uma tese que pode ser observada no próprio conjunto da obra do autor. Juliano Pavollini, originalmente publicado em 1989 e agora relançado, costura-se com os principais elementos presentes na maioridade literária de Tezza.

Trata-se de um autor que escreve bem, o que, é claro, não equivale necessariamente a escrever bonito. Um texto que privilegia o belo pelo belo, ou o feio pelo feio, pode não significar coisa alguma, e reduzir-se a mero exercício estético, com direito aos extremos do sublime e do abjeto, duas faces da mesmíssima moeda. A boa literatura está longe disso. Parece óbvio, e no entanto há quem considere o texto bem escrito uma caretice, hoje, e veja qualidade em certos falsos escândalos, espécie de contracultura de butique, que vêm ao mundo querendo-se transgressão e têm gosto de café requentado.

De Juliano Pavollini a Breve espaço entre cor e sombra, lançado nove anos depois, Cristovão Tezza parece ter reiterado sua opção por escrever bem, dispensando modismos.

O narrador do romance em questão, Juliano Pavollini, conta para a psicóloga e possível salvadora Clara a história de um curto e definitivo período de sua vida. ''Aos 16 anos fugi de casa; aos 17 perdi a virgindade'', escreve ele. ''Aos 18, todos me olhavam na rua como se olha um homem adulto.'' Agora, Juliano está na cadeia, condenado por um crime ao qual foi irremediavelmente levado pelas contingências da vida que o enredou - embora, no começo, tivesse tudo para dar certo, como ele mesmo afirma.

Nos anos 60, o adolescente imberbe foge de casa no dia da morte do pai, um interiorano pobre e tosco, esmagado pela modernização do país. Vai para Curitiba, a metrópole, e já no ônibus cai nas graças da cafetina Isabela, ''mãe perfeita, que não pensava em Cristo e que no mesmo corpo desdobrava outras mulheres, cores, tons e odores''. Isabela o adota e o aloja em seu bordel. Mas para ele, por incrível que pareça, o sexo ali é tabu. Juliano é iniciado nas artes do crime antes de conhecer as da cama.
Por outro lado, também lê, freqüenta escola, aprende datilografia, escreve poesia. Num universo paralelo ao das prostitutas e dos marginais, apaixona-se perdidamente por uma Doroti que saiu das telas de O mágico de Oz. Os dois comem pipocas, ele lhe dá rosas, ela lhe dá um livro de Kipling. Doroti é sua salvação e sua perdição - aliás, o mesmo poderia ser dito de Isabela. Que surpresas vai lhe reservar a psicóloga Clara?

Para delinear a voz com que Juliano conta sua história, Tezza não recorre à fácil estratégia narrativa ''mundo-cão'' e nem a uma desnecessária romantização do submundo curitibano dos anos 60. Consegue encontrar uma tonalidade de admirável e raro equilíbrio. Juliano é franco, apesar de mentiroso profissional. O leitor é arrastado para a cumplicidade, sem julgamentos morais, mesmo que saiba que o duplo mundo de Juliano vai ruir. As perguntas que grudam seus olhos às páginas são: exatamente como e quando?

Há, porém, uma controvérsia de fundo filosófico rondando as entrelinhas: o homem é, de fato, intrinsecamente bom, e o meio o corrompe? Juliano, que ''tinha tudo para dar certo'', vai desandar por causa do pai que batia nele, das prostitutas, dos marginais, da falta de horizonte familiar? E nem a arte, via literatura, tem a capacidade de salvá-lo?
É verdade que a postura do jovem Pavollini, tantas vezes um espectador de si mesmo, se define logo às primeiras linhas do romance: ''Certas pessoas são incompletas de um modo estranho,'' escreve ele. Mas é uma pena que os outros personagens, como a suave Doroti, a extremada Isabela, o policial Rude e o inescrupuloso Odair, em alguns momentos corram o risco de perder a tridimensionalidade e aplainar-se na fronteira da caricatura.

Apesar disso, o texto de Cristovão Tezza encanta pelo que há de mais ''literário'' numa obra literária, e de menos ideológico. É um livro que seduz, que angaria simpatias e repulsas, que se sustenta, mesmo quando ameaça um tropeço. Está lá o tal DNA evocado pelo personagem de Breve espaço entre cor e sombra. E, afinal de contas, parafraseando o próprio Juliano Pavollini, talvez seja mesmo um espanto que as coisas do mundo possam vir a ter alguma semelhança com a literatura que fazemos delas.

Adriana Lisboa é escritora, autora de 'SINFONIA EM BRANCO' E 'OS FIOS DA MEMÓRIA'


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