Correio Braziliense - Caderno Dois
Brasília, 7 de fevereiro de 1990


As memórias de um mundo sombrio

Regina Dalcastagnè

Juliano Pavollini agora é um homem e está preso. Mas ele já foi o menino assombrado pelo retrato dos próprios pais, o adolescente que foge de casa para nunca mais voltar, o jovem que ama, o que escreve poesias, e o que mora num bordel. O Juliano da memória é nítido, quase transparente, contanto que não seja único. "Não há Deus, estou convencido, e mesmo se houvesse ele não nos condenaria tão brutalmente a carregar nossa sombra intocada, a sombra aleatória de algum momento escolhido ao acaso entre o nascimento e a morte. Quem, olhando para trás, diria: eu sou aquele ali?" Juliano Pavollini agora é um homem que está preso e conta sua história. Juliano Pavollini é o último romance de Cristovão Tezza.

Ele inicia suas memórias dizendo que tinha tudo para dar certo, exceto a família. Por isso, assim que seu pai morre, dá um jeito de se livrar dela. Rouba o dinheiro do bolso da calça do tio e toma oprimeiro ônibus para a capital. Senta ao lado de uma mulehr, faz pose de adulto, conta meia dúzia de mentiras e acaba sendo adotado por ela. Vai viver no seu bordel, onde é mimado por uma dezena de prostitutas, sem poder se aproximar de nenhuma. Ali teve aulas, aprendeu equações de segundo grau e onde ficava a Birmânia. Aprendeu a beber, a fumar e a mentir com sofisticação. Escrevia poesias e arrombava casas, se afundava num mundo que lhe parecia único. Mas agora está preso e revê sua história. "Continuo correndo atrás de mim e esbarrando numa multidão de seres. É neles, só neles, que tenho algum esboço de medida".

Juliano Pavollini é um livro denso, de narrativa forte e poética. Não são os desastres da vida do protagonista que importam, mas a sua consciência de não estar contando o que realmente viveu e de que não viveu como pensava. Uma multidão de seres, uma multidão de fantasmas e sombras, um mundo sem luz. O mundo de Demian. No livro de Hermann Hesse o personagem principal se debate entre o "mundo luminoso" (ideal) e o "mundo sombrio" (real). O primeiro é representado pela família, o conforto de sua casa; o outro, é a rua, o amigo Demian. A máxima do livro era que quem quisesse nascer teria de destruir um mundo. Juliano Pavollini possui esse mesmo clima. Algo de opressivo e revelador. Não que Juliano tenha também se confrontado entre um mundo e outro, sua opção foi rápida, inconsciente até; mas ele está ali, fazendo poesia e roubando.

Na prisão ele revê o que foi, sem no entanto, poder dizer o que é: "Com o passar do tempo, o tempo perde o brilho, massa flutuante, uma ponta aqui e outra lá, entre os vazios. Quanto mais nos afastamos, mais tudo fica igual a tudo. Perdemos senso, nitidez, ângulos; perdemos a fúria. Há quem chame isso sabedoria. Se nos afastamos ainda mais, olhando para um passado que está em lugar nenhum, mas que nos lanha, queremos morrer, e também isso parece sabedoria. E há os que se aferram desesperados ao que foram, ou poderiam ter sido - passamos a vida escutando os gritos desses loucos. Comigo não acontece nem uma coisa nem outra. Tenho plena consciência de que não consegui ser nada, mas não desisti".

Assim, Juliano Pavollini é um pouco de cada um que conheceu e mesmo daqueles de quem jamais ouviu falar. Quando avalia sua própria história repensa a de todos nós.


(Esta resenha é parte integrante da matéria "A busca da identidade e o fantasma da solidão", publicada na mesma página)


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