B*Scene - 10/7/05
http://www.gardenal.org/bscene/literatura/tezza.htm

Em um único dia em Curitiba durante a campanha eleitoral para a presidência da República, uma série de coincidências ligam os personagens de Cristovão Tezza em O Fotógrafo. Vencedor do prêmio da ABL como melhor romance de 2004, o livro investiga a solidão e a melancolia dos habitantes das grande cidades

Retratos da solidão urbana

Por Jonas Lopes

A solidão é a forma discreta do ressentimento. Esta é a frase que abre O Fotógrafo, último romance de Cristovão Tezza, lançado no final do ano passado pela editora Rocco. De certa forma, a frase norteia todo o romance, que há pouco tempo recebeu da ABL o prêmio de melhor de 2004. Os personagens, em uma Curitiba às vésperas da eleição presidencial de 2002, estão impregnados de uma melancolia azeda. Como numa espécie de auto-exílio, escolhem para si a solidão e isso os sufoca. Guardam os ressentimentos em silêncio, à espera do momento adequado para colocá-los para fora - um momento que nunca chega. Não à toa, estão sempre pensando alto, balbuciando coisas desconexas. Um artifício inteligente do autor.

A história se passa em um só dia, como em Ulisses (James Joyce), Mrs. Dalloway (Virginia Woolf) e o recente Saturday (Ian McEwan). Um fotógrafo é contratado por um homem misterioso para fotografar secretamente uma modelo, Íris, e se apaixona por ela, que é sustentada por um ricaço. Precisa decidir entre aceitar o trabalho e ganhar o dinheiro ou desistir dele e ir atrás de Íris. Ao mesmo tempo, o fotógrafo vive uma crise conjugal, mas não sabe como dizer à esposa Lídia que seus dias juntos terminaram. Lídia também acha isso e, assim como o marido, não sabe como expressar o problema, e começa um caso com seu professor de mestrado, Duarte. Duarte é casado com uma mulher que, bingo, é analista de Íris. Em uma cena, Lídia e Íris se cruzam em um elevador.

Uma série de complicações, portanto. Tezza poderia ter se perdido na construção dessa teia engenhosa, mas não. As histórias estão bem amarradas e concisas (ainda que tantas ligações sejam inverossímeis). Tudo se encaixa. E como essas coincidências são reveladas aos poucos, a tensão permanece a cada página. Pela questão do silencioso desentendimento entre os personagens, a tal da forma discreta do ressentimento, O Fotógrafo se assemelha a Matéria de Memória, de Carlos Heitor Cony. Um trunfo de Tezza é fundir os fluxos de pensamento com a narrativa. Isso provoca um efeito interessante, quase que de devaneios permanentes. Os pontos de vista se alternam. Primeira e terceira pessoas confundem-se, o que aproxima o leitor dos personagens.

Cristovão preenche uma grave lacuna na literatura brasileira: é urbano sem necessariamente retratar a violência, como fazem Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. Fazem bem, é claro, mas o outro lado também merece ser mostrado. É possível fazer uma analogia com o cinema argentino contemporâneo. Assim como nos filmes recentes de nossos hermanos, Tezza conta uma boa história dentro de um contexto social. O clima político da disputa entre Lula e Serra está bem presente, mesmo que não influencie diretamente a trama. A cidade de Curitiba é essencial como pano de fundo.

Os autores brasileiros têm tido dificuldade em fazer essa ponte entre suas histórias e a situação social do país. E mais ainda em criar obras urbanas sem perder a densidade ou a boa escrita. O Fotógrafo preenche todos esses quesitos. É uma competente coleção de retratos da vida cotidiana (para ficar em uma metáfora com o título). Por seu arrojo narrativo, pela sensibilidade em esculpir um belo texto sem perder o poder oral e, principalmente, pela coragem de adentrar esse árido terreno da literatura urbana de qualidade, Cristovão Tezza merece aplausos.


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