Revista Época
Nº 341 - 29 novembro 2004


A vida fora de foco

Cristovão Tezza retrata o mal-estar das relações contemporâneas no novo romance, O Fotógrafo

JOSÉ CASTELLO


Os artistas sempre desconfiaram da fotografia. ''É demasiado mecânica para permitir que nos apossemos completamente das coisas'', disse o pintor Georges Braque. Também Pablo Picasso se inquietava com o ponto de vista fixo e o campo visual arbitrário que a caracteriza. Ainda assim, a fotografia resume o fascínio e a obsessão que a modernidade tem pela imagem.

Em O Fotógrafo, novo romance de Cristovão Tezza, a ilusão fotográfica é posta à prova. Em 25 capítulos, dispostos como fotos numa exposição, o livro flagra os conflitos do repórter fotográfico Rodrigo, homem em crise existencial que é contrato para fotografar - na verdade, vigiar - uma modelo, Íris. A dificuldade do fotógrafo é sustentar o papel impreciso que lhe foi destinado, em troca de míseros US$ 200. A angústia o empurra para o desejo de confessar sua identidade - não o fotógrafo de uma agência de moda, mas um espião.

O protagonista de Tezza se entrega, assim, a meditações dispersas que o fazem questionar o papel do fotógrafo como mensageiro da identidade: ''Só estamos nessa terra para ligar a pessoa à sua imagem e depois nos afastar em silêncio''. Seu projeto de devolver os US$ 200 à modelo é, na verdade, o desejo de lhe devolver a imagem - e, ato contínuo, restaurar a sua. Mas, como diziam Braque e Picasso, a realidade é complexa demais para caber numa foto. Em torno do protagonista desenrolam-se outras histórias, a partir de um mesmo nó de insatisfação e desencanto. Lídia, mulher de Rodrigo, se apaixona por um professor, Duarte. Casada com Duarte, Mara, uma psicanalista, é por sua vez a terapeuta de Íris. Sem se conhecer, Íris e Lídia chegam a se cruzar num elevador. Círculos se fecham e peças se misturam sem nitidez.

O Fotógrafo retrata o mal-estar das relações contemporâneas e que faz do homem um ser inerte e ressentido. No romance, as coisas estão prestes a acontecer ou já aconteceram, como se o presente fosse uma impossibilidade. Tudo que um fotógrafo como Rodrigo pode fazer é aproveitar um facho de luz. Como dizia o psicanalista inglês Wilfred Bion, o pensamento não passa de um rápido clarão entre duas escuridões. Como o espocar de um flash, que fisga a face do mundo enquanto o resto lhe escapa.


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