O GLOBO
Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1988


RARA COMPETÊNCIA

Esdras do Nascimento

Um poeta de 20 anos se suicida e deixa na pensão onde morava centenas de páginas inéditas que vão parar nas mãos de um professor aposentado, em Curitiba. Vivia bêbado, era viciado em drogas, passava as noites pelos bares, em companhia de um desenhista que estava sempre de porre, ou ficava na pensão, escrevendo cartas desvairadas a uma garota por quem se apaixonara. Brigado com a família há anos, odiava o pai, que matara seu galo de estimação quando ele era criança.

Até o momento em que os originais chegaram às mãos do professor aposentado, levados pela dona da pensão, os amigos do jovem poeta se martirizavam porque não conseguiam sequer imaginar as razões que o teriam levado ao suicídio. Embora não atribuindo grande importância aos originais, que não parecem ter mérito literário, o professor se fascina pelo autor e passa a dedicar todo o seu tempo disponível à tarefa de saber quem ele realmente era, como vivia, o que fazia, o que pensava, com quem se relacionava.

Essa investigação, repleta de encontros com pessoas esquisitas, de uma geração muito mais nova, em lugares que ele considera exóticos, se transforma, aos poucos, na grande aventura da sua vida. E o professor, que antes não bebia, estimulado pelo vodca e pelas conversas com os amigos do jovem suicida, resolve escrever um romance a partir dos dados biográficos que conseguiu reunir.

É essa, em resumo, a história narrada em "Trapo", romance de Cristovão Tezza. O autor mostra nesse livro uma competência técnica raríssima de encontrar. Ele adere até certo ponto à moda da chamada escrita automática, que caracteriza, entre dezenas de outros, os trabalhos de Bukovski, Burroughs ou Henry Miller. Mas vai além. É irônico, como Nabokov, ridiculariza uma certa literatura "de vanguarda", brinca com vários "estilos" poéticos, satiriza a visão de mundo dos bem postos na vida e jamais se perde no emaranhado lingüístico, literário, político e sociológico em que, de peito aberto, se meteu.

Os originais do poeta que se matou são, na certa, produzidos sob efeito de drogas. A narrativa do professor aposentado é equilibrada, "elegante", preconceituosa e tradicional, no contéudo e na forma. Um contraste entre os capítulos que se alteram, com os dois tipos de linguagem, poderia desequilibrar o romance, na sua totalidade, não fosse Cristovão Tezza um escritor consciente dos recursos que utiliza.



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