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São Paulo, 3 de dezembro de 1995


Dois fantasmas em combate

BERNARDO AJZENBERG

Do alto de seus 50 anos, o renomado historiador Frederico Rennon, personagem central de "Uma Noite em Curitiba", revê o próprio passado e conclui que metade dele transcorreu em completo equívoco. O motor dessa revisão - que acaba por esmagá-lo em trágicas proporções - é o reencontro perturbador com Sara Donovan, uma atriz famosa, 25 anos depois, por ocasião de um evento acadêmico.

Quem conta a trama é o filho de Rennon, típico exemplar de "ovelha negra" - ex-drogado, aluno mal-visto - transformado em narrador cruel, vingativo e implacável, para quem "a família não pode ser o território da verdade, ou não sobrevive, e cujo caráter cáustico se expõe logo na primeira frase: "Escrevo este livro por dinheiro".

Para fazê-lo, reproduz cartas arquivadas no computador do pai - redigidas por este no intervalo de poucas semanas em torno do evento acadêmico e destinadas, mas nem sempre enviadas, à atriz - às quais intercala a sua "versão" dos fatos, dos sonhos, da vida dupla de Rennon, de conflitos e arrependimentos ali ruminados pelo professor.
As duas visões, obviamente, são conflitantes. Apesar da proximidade familial, é como se dois fantasmas digladiassem num terreno abstrato. Não fosse assim, "Uma Noite em Curitiba" não seria de Cristovão Tezza, 43, catarinense radicado na capital do Paraná que, desde "Trapo" (1988), tem na contraposição de pontos de vista e na tenuidade da fronteira entre o real e o fictício traços marcantes de seus romances.

O que talvez aproxime pai e filho, neste seu novo livro, está mais no terreno da ironia produzida pelo ressentimento. Tal como o narrador, também o professor Rennon faz apelo a ela em sua autoflagelação, como no seguinte trecho de uma carta: "Não há tarefa mais difícil para um homem do que ficar nu. O início é corriqueiro: as mãos desabotoam - e a pele, acanhada, provinciana, miudinha, aflora sua geografia despedaçada. Quer dizer, eu: manchas, pêlos, riscos, suores, a relativa desproporção dos volumes, as inutilidades adiposas e flácidas, a definitiva impossibilidade da estátua de bronze...".

Significativo que, em momento bem anterior, o filho-narrador se refira ao pai como "um homem que passou 50 anos polindo a própria estátua".
Do mesmo modo que nos trabalhos precedentes, Tezza dá atenção especial para a linguagem como expressão dos personagens. Ela é próxima do coloquial, ágil e econômica no caso do narrador e discursiva, hesitante, prolixa, fria, às vezes barroca, no caso do historiador.

Para o leitor, essa oscilação proposital se une aos pequenos momentos de suspense criados sutilmente pelo autor no que se refere às "loucuras" cometidas no passado (explícita e simbolicamente localizado no ano mágico de 1968) e no presente (1993) pelo professor em crise.

Uma observação. Diz-se comumente que Tezza é o herdeiro literário de Dalton Trevisan. Apesar de cair bem em termos de mercado, tal afirmação é discutível. A Curitiba de um não é a mesma do outro, seja na topografia, seja no meio social; para não falar dos estilos, igualmente diversos. A obra de Trevisan é "egoísta": por sua magia ímpar, pela velocidade de raio de seu texto, ela destrói de imediato as estradas inéditas que construiu antes, de modo a que ninguém refaça o caminho, salvo como impostura. Tezza também é, sem dúvida, um construtor, mas de bem outras estradas.



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