GAZETA DO POVO
Curitiba, 13 de novembro de 1995


PAPÉIS CAMBIADOS

Miguel Sanches Neto


Cristovão Tezza é um escritor ligado ao espaço urbano. Desde os seus primeiros livros, em que uma visão romântico-revolucionária se manifestava dentro do espírito contestador da época, até os seus mais recentes trabalhos, ele se mantém fiel ao eixo geográfico em torno do qual giram as suas histórias. A cidade de hoje difere, no entanto, daquela dos primeiros livros. A cisão se dá com Aventuras Provisórias (livro escrito antes de Trapo, mas só publicado posteriormente), quando a utopia da fuga do meio urbano - chame-se ela destruição da cidade ou exílio em comunidades alternativas - toma-se impraticável. De Aventuras Provisórias em diante o autor e seus personagens buscam habitar a cidade com o fardo de fracassos às costas. (Penso o fracasso em relação à luta contra a cidade). Até em A Suavidade do Vento o personagem principal é Curitiba. Toda a história no interior do estado não passa de uma projeção imaginária de um narrador curitibano que continua sonhando com a fuga da pequena metrópole.

Deixando de buscar a destruição da cidade, o autor passa a povoá-la com os seus fantasmas interiores, que são os fantasmas de toda uma geração. Cristovão vai criando uma comunhão entre os homens vencidos e a cidade vencedora.
Em Uma Noite em Curitiba (Rio de Janeiro: Rocco, 1995), o seu mais recente trabalho, a cidade torna a ocupar um papel relevante. O paralelo que se tem feito com Dalton Trevisan, outro implacável cartógrafo curitibano, comporta alguns diferenças essenciais. Se ambos pensam o mundo a partir deste ponto definido que é a cidade, eles se distanciam pela própria natureza deste espaço. A Curitiba de Dalton não é a de todo mundo, é dele exclusivamente - funcionando como uma espécie de superposição de pianos em que passado e presente se amalgamam para formar uma urbe pessoal. Esta cidade está fora do tempo e do espaço históricos e habita os forros da memória do contista. Desse modo, Trevisan transforma a Curitiba de todo mundo numa Curitiba que só pode ser visitada em suas obras. A Curitiba de Tezza, menos exclusiva, é a que percorremos cotidianamente e está num tempo e num espaço bem delimitados: é a capital tipicamente classe média. Isso nos permite pensar que, mesmo coincidindo externamente, cidades ficcionais dos dois escritores têm papéis e consistência próprias. A Curitiba de Cristovão é onde o homem Dalton Trevisan vive, enquanto a deste é um local-síntese.
Neste romance de Cristovão vamos encontrar referências a um espaço muito definido: o prédio da Reitoria da Federal, Santa Felicidade, a esquina da XV com a MarianoTorres... Mas a cidade não funciona apenas como uma paisagem decorativa, como enchimento do texto. Ela aparece para caracterizar o espaço em que se movem os personagens, servindo, assim, para defini-los. Sendo uma cidade classe média por excelência, ela é o paraíso do funcionário público, das ilusões provincianas de consumismo e de estabilidade social. É para reforçar isso que as referências topográficas ganham destaque.

O enredo do romance em apreço é bastante enxuto. No livro anterior de Cristovão, O Fantasma da Infância, havia uma certa tendência para o rocambolesco - que, alegra-me constatar agora, foi abandonada. Na verdade, esse é o livro mais profundo do autor, em que há uma opção pelo texto inteligente e pela verticalidade em detrimento da horizontalidade - que é sempre perigosa. Valendo-se novamente de uma estrutura dupla, o livro trata da queda de um historiador ao reencontrar uma paixão antiga. Este mergulho no amor do passado é também um mergulho no verdadeiro destino do professor Frederico, interrompido por uma carreira universitária que funciona como escudo protetor. O fato deste reatamento dos fios de seu destino levá-lo a um desfecho trágico não tira o seu valor positivo.
A história é revivida pelo filho do professor, que organiza e publica as suas cartas, no começo profissionais e depois apaixonadas, para uma famosa atriz carioca. Estas cartas são uma busca arqueológica do pasado e da face verdadeira do professor. Quem as escreve é um respeitável catedrático em fim de carreira, que tem dois filhos transviados e uma mulher indiferente. A organização de um encontro sobre Literatura e Cinema dá ao professor a oportunidade de rever a mulher (Sara Donovan) que marcou a sua juventude. Aos poucos, através de cartas que são um misto de confissão e poesia, ficamos sabendo que o professor Frederico foi um militante político, um revolucionário e que cometeu um crime no passado. A sua vida constitui uma tentativa de encontrar uma estabilidade na carreira profissional e familiar, na esperança de anular este seu outro lado. O reencontro com Sara é o ressurgimento do amor, mas é também o desabrochar de um tempo que até então permanecia adormecido. A recuperação deste tempo perdido se dá através das cartas, cujo teor vai mudando numa rapidez vertiginosa, rapidez esta que reflete a ânsia de retomar a vida a partir do ponto interrompido. Sara é um fantasma da juventude - é bom lembrar que, embora beirando os 50 anos (Frederico tem 51), ela é uma mulher jovem. Não é, no entanto, um fantasma de quem se corre e sim para quem se corre. Reencontrar-se ao reencontrá-la acaba colocando a perder toda uma respeitabilidade, principalmente a acadêmca, que ele criara como proteção. Frederico deixa tudo para segui-la. E o fantasma das origens se revela a origem dos fantasmas.Há um jogo de papéis que, na minha opinião, define a excelência deste romance. Os filhos de Frederico são elementos socialmente desajustados. A filha abandonou a casa e não dá notícias. O rapaz, ex-traficante de drogas, vive sem nenhum objetivo definido. É como se eles vivessem em suspensão. Frederico é moralista e infemiza a vida do filho, tratando-o sempre como inútil. Na verdade, os filhos são a personificação do seu passado. Ignorá-los é ignorar a rebeldia de sua juventude, é uma maneira de não aceitar a sua face criminosa. Logo, a sua dificuldade de conversar com o filho está psicanaliticamente ligada ao temor de se reencontrar.

É através das cartas, isto é, da descoberta dos segredos mais recônditos do pai, que o filho vai derrubando a sua estátua de perfeição e encontrando o seu próprio destino. Quando o velho professor foge, assumindo o seu papel verdadeiro e abandonando a máscara, ele está permitindo que a família volte a viver suas vidas: a mulher toma-se novamente alegre, passa a sair com as amigas; o filho se dedica aos estudos c passa no vestibular. Assim, Frederico retoma o seu caminho de revolta e o filho, que era revoltado, assume o caminho universitário dó pai: começa a cursar história. A rebeldia reencontrada pelo pai permite ao filho buscar estabilidade econômica (escreve a biografia paterna por dinheiro), familiar (pretende se casar) e profissional. Os papéis são cambiados, desencadeando talvez o início de uma nova rede de equívocos, mentiras e máscaras.

Uma Noite em Curitiba recicla este tema caro a Cristovão: a adaptação ao mundo capitalista. O passado de lutas, desta que foi a última geração revolucionária, aparece aqui como um caminho pessoal de autenticidade, mas sem saída. Para Frederico a ética revolucionária torna-se uma ética de prazer e de marginalidade que o leva ao suicídio. A sua vitória sobre a máscara foi, por isso, uma vitória relativa, mas moralmente válida. O fracasso desta geração é mais uma vez retratado por Cristovão, que encontrou no estudo das mudanças históricas dos últimos 30 anos um material rico.
Existe, salvo engano, uma inadequação de linguagem no livro. A linguagem do filho que narra a história e a do pai que escreve as cartas se confundem. Ou seja, elas não caracterizam os personagens. A do filho está além da linguagem de um universitário. E a de Frederico está aquém da de um pesquisador conceituado. Esta inadequação faz com que o livro, marcado por duas estruturas e por dois pontos de vista, se torne um pouco literário. O personagem, para ser bem caracterizado, tem que possuir uma linguagem própria. E isso nós encontramos em Trapo, romance em que havia uma diferenciação muito bem demarcada entre os trechos do poeta adolescente, escritos de forma alucinada, e os trechos mais moderados do professor Manuel, que organizava o material do poeta. Diga-se de passagem que em Uma Noite em Curitiba há uma mudança de situações. Aqui é o poeta adolescente que organiza as cartas de um professor. No outro romance, era o professor que tentava entender a vida do jovem poeta. Os dois, no entanto, encontram nesta tarefa a mesma coisa: a descoberta, através do outro, de sua própria identidade.

Mas essa coincidência de linguagem talvez não seja acidental. E esteja sendo usada para caracterizar a mudança de papéis ou para colocar uma dúvida quanto à autoria das cartas do professor Frederico. Será que tudo não passa de uma invenção do filho para ganhar dinheiro? Tal dúvida só aumenta as qualidades deste romance que é o melhor de toda a carreira de Cristovão Tezza. Uma Noite em Curitiba mostra que ele está muito perto de uma grande obra-prima sobre o assunto que o persegue. Dominando a técnica, a linguagem e os temas, Cristovão está em condições de escrever um romance que seja um marco na nossa literatura. Algo no diapasão de um Grande Sertão: Veredas, de um São Bernardo ou de um Quarup. Quer me parecer que este romance talvez possa ser obtido, a partir da soma das qualidades de todas as suas obras, assim como Fogo Morto é a retomada sintética de livros anteriores de Zé Lins do Rego. A orquestração de diversas histórias, que ultrapassaria a tendência binária de seus livros, parece ser - se não for muita pretensão tentar apontar um rumo - o caminho natural deste romancista admirável.


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