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Publicado em 28/05/2014


Cristovão Tezza cruza memórias com passado do Brasil em "O professor"

Rodrigo Casarin

Depois de lançar "O Filho Eterno", em 2007 --livro pelo qual recebeu os prêmios mais importantes da literatura de língua portuguesa--, Cristovão Tezza continuou produzindo a um ritmo constante. Vieram "Um Erro Emocional" (2010), "Beatriz" (2011), "O Espírito da Prosa" (2012) e "Um Operário de Férias" (2013). Agora, lança "O Professor", sua obra mais ambiciosa desde o título que lhe fez um escritor conhecido do grande público. "Para esse livro, minha entrega foi maior. Era para ele ser de fato mais denso", disse o autor ao UOL.

Tezza começou "O Professor" em 2010, quando escreveu a página inicial de algo que se chamaria "A Homenagem". Pensou apenas como uma novela, mas após retomar os trabalho práticos, já em 2012, percebeu que a história renderia um romance. Passou um ano construindo sua nova obra. Acordava todos os dias da semana às 9h da manhã e escrevia até o meio dia --não consegue criar ficção por mais do que três horas por dia, por isso deixa as tardes para textos mais leves, como crônicas.

"O único esqueleto que eu tinha era que o personagem se levantava, tomava banho, café e saía. O resto eu fui compondo, controlando o volume de informações, montando um mosaico da memória dele, equilibrando as partes. Na minha idade, já sei selecionar, ir direto para o que tem importância na construção do protagonista, na escolha do foco. Não era assim quando tinha 30 anos. A perspectiva da vida muda", contou ele, que hoje tem 62 anos.

Brasileiros com pé atrás

A trama conta a história de Heliseu, um professor universitário que, ao acordar no dia que receberá uma homenagem pela carreira acadêmica, precisa preparar um discurso para a cerimônia. Ao tentar escrever algo, perde-se em suas memórias. Recorda da rigidez de seu pai, da misteriosa morte da mãe, do decadente casamento e da conturbada relação com o filho.

Todas essas lembranças se intermeiam com o passado do Brasil --e questões problemáticas principalmente das décadas de 1960 e 1970--, até o dia em que a história se passa exatamente quando o Papa renúncia a seu cargo, algo que, para o autor, beira o inacreditável. "A última vez que isso aconteceu tinha sido no século 15. Pô, com isso parece que tudo pode acontecer", lembra, referindo-se às renúncias de Gregório 12º e Bento 16º.

As memórias de Heliseu também alcançam o relacionamento que teve com Therèze, aluna francesa residente no Brasil e que o escolhe para ser o orientador numa tese que investiga como a ambiguidade usada pelos brasileiros na língua oral pode ser transferida para a gramática. "A tese foi pensada, queria que ela ficasse no centro do livro, pois é o eixo dele. Essa ideia nasceu há dois, três anos, num papo com um ex-professor sobre o tipo de humor do brasileiro, de perceber subtendidos em tudo", descreveu.

"O brasileiro está sempre com o pé atrás, ouvindo a segunda parte, e isso cria eventuais ruídos de comunicação com estrangeiros, que tendem a ser mais literais. Igual esse pessoal da Copa do Mundo que acreditou que as coisas iriam ficar prontas. O brasileiro já sabia que não ficaria pronto, mas teria o campeonato do mesmo jeito", argumenta Tezza, que também justifica a escolha da personagem.

"Para perceber algo assim, teria que ser um estrangeiro, por isso que surge a Therèze, uma francesa judia. O Heliseu não é o professor adequado para aquela tese, mas ele, com o casamento desandando, apaixona-se pela jovem e pela sua proposta. Minha preocupação foi não transformar isso numa coisa chata, especializada demais".

Romance proustiano

"O Professor" vem sendo apontado pela crítica como um romance proustiano, principalmente por se passar majoritariamente no imaginário de seu protagonista e se concentrar em um espaço de tempo físico bastante breve. Nele, Tezza volta a utilizar algo que já pode ser considerado uma de suas marcas: o narrador duplo, um com onisciência limitada, relativa apenas ao protagonista, e outro sendo o próprio personagem.

"As passagens do ponto de vista são muito comuns em nosso dia a dia. Fazemos isso quando falamos, e eu tenho muita influência da oralidade. Às vezes a língua escrita tem dificuldade em lidar com essas rupturas, mas o romance é alguém que fala, mais do que alguém que escreve". O recurso, utilizado pelo escritor desde "Breve Espaço Entre Cor e Sombra", de 1998, também foi usado em "O Filho Eterno", no qual o artifício se fez essencial para que a história pudesse ser contada.

Como Heliseu, Cristovão Tezza também teve uma carreira de professor universitário, que durou mais de duas décadas. Foi o sucesso de "O Filho Eterno", um romance com toques autobiográficos sobre a aceitação de um pai a seu filho com síndrome de Down, que possibilitou que deixasse a sala de aula para se dedicar exclusivamente à criação ficcional.

Trecho

"Fechou os olhos, ponderando as possibilidades: um, porque eu estava disponível, o desejo da traição já vinha me tomando a alma há meses, esperando a sua presa , ou o seu momento, embora tudo não passasse de espera - nenhuma iniciativa. É como se, a todo momento, os olhos procurassem no emaranhado da página, em dez mil desenhos de figuras circulantes, como em quebra-cabeças coloridos de crianças, onde está a heroína oculta que nos libertará, mas será como se ela me visse, e não eu a ela. É ela que me encontra - não tenho culpa. Um homem disponível, o que parece estranho, e sentiu a angústia dos papéis invertidos, prostitutas são disponíveis, diria seu pai, não homens, e ele sacudiu a cabeça pela grosseria estúpida da imagem, homens escolhem, mulheres são escolhidas, eu som alta proffundeza de perdiçom; eu som deleitaçom mortal de todos os maaos deseios; eu, do diabo emganada, muytos enganey, e voltou a se concentrar em Therèze, que sorria diante dele, as pernas cruzadas, o mesmo sorriso ambíguo de quem pede desculpas mas aposta na própria graça para ser desculpada, a chantagem inocente da beleza: Desculpe, professor."

"Cristovão Tezza, citação do livro "O Professor"


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