Jornal do Commercio
Publicado em 18/05/2014


As memórias do professor
Escritor catarinense lança o romance O professor, no qual trabalha a lembrança em um fluxo confuso e esclarecedor

Diogo Guedes

Passar a limpo o passado é um dos grandes temas literários. No Brasil, remonta ao menos a Machado de Assis. O olhar do presente ante as lembranças, claro, é sempre rico de possíveis nuances. Em seu novo romance, O professor (Record, 240 páginas), o escritor catarinense Cristovão Tezza empreende uma curiosa revisitação ao assunto, com um fluxo narrativo e de memória que é confuso e esclarecedor ao mesmo tempo.

O livro marca a volta do autor às narrativas longas depois de Um erro emocional, de 2010. Tezza é dos mais respeitados escritores de sua geração – em 2008, conseguiu um feito raro, levando todos os três principais prêmios literários brasileiros com O filho eterno. O autor traz para O professor um ambiente que conhece bem, o das universidades, em que atuou antes de se dedicar inteiramente à literatura, com um personagem singular.

Heliseu, protagonista do romance, é um velho acadêmico aposentado, prestes a ser homenageado por seus pares. Como em Um erro emocional, o livro se passa no período de poucas horas, entre seu despertar e a ida para a palestra; a literatura aqui transforma um curto intervalo em um modo de compor um passado nas suas falhas, interrupções e dúvidas. “É claro que não poderia falar da sua vida pessoal (na homenagem), mas a sua vida pessoal atropelava-o em cada curva do pensamento, voltava a ele como um animal desgovernado”, conta o romance. Assim, de forma desgovernada, vida pessoal e carreira – ele é um respeitado nome da filologia, ciência que estuda a origem das palavras – se misturam na narrativa.

“Eu sempre fui o tipo de sujeito que não parece estar em lugar nenhum, uma pessoa sem nitidez, um sujeito indeciso, um esquisito sem partido, um ‘reacionário’, como certa vez entreouvi naquele mesmo café, ‘ele nem chega a ser de direita’”, reflete o personagem, em dado momento. A beleza do livro é criar nessa figura aparentemente amorfa um homem relativamente perturbado com a própria história (mas não atormentado, o seu incômodo não tem tons excessivamente dramáticos).

Pensamentos, memórias e ação presente se unem no relato, ainda enriquecido com inserções de português arcaico, por exemplo. Tudo poderia ser uma forma complexa demais, difícil de penetrar, não fosse Heliseu uma figura transparente em sua humanidade, distante e próxima do leitor. A homenagem o motiva a ir atrás do “sentido da sua vida”, a definir o passado agora que, sozinho e viúvo, se vê forçado a isso. Assim, mais do que ler um relato convencional da vida de um homem, o que se vê é alguém, no instante atual, tentando aparar e manipular suas próprias lembranças, como se o fluxo caótico da mente reconstruísse de forma particular o que aconteceu cada vez que é acionado.

AMANTE

Para explicar melhor o que consome essas recordações de Heliseu, é preciso falar um pouco do passado que ele revisita. Primeiro, estão as memórias acadêmicas, que revelam as ironias escutadas por ser um quase conservador ao fim da ditadura e o esquecimento por pertencer a uma área menosprezada dos cursos de letras. Depois, as suas relações amorosas: com a mulher, falecida em um misterioso acidente na sua casa, ponto central do romance; e com a amante, uma francesa que surge como sua ousada orientanda de doutorado. Por fim, analisa a sua relação com o filho, homossexual assumido, que se distanciou do pai porque os dois não se dão bem.

O próprio Heliseu define um pouco o propósito de O professor: “Rever o instante exato em que a paixão não teria mais volta, porque as coisas emocionais que nos acontecem sempre têm um ponto de não retorno”. De certa forma, o personagem quer se perdoar em alguma medida: buscar o ponto sem retorno é achar a justificativa final para seus erros, mesmo que não os reconheça completamente.

Uma das riquezas da obra é falar de um passado cheio de culpas sem tornar o personagem um homem imobilizado pelas memórias – Heliseu é cínico e humano, cria um pedestal e desce dele sem querer, na frente do leitor. Da mesma forma, a narrativa vai se contando aos fragmentos, forjando mistérios onde nem sempre há. Quando nota, o público está esperando alguma descoberta repentina, a definição do momento em que o professor se revelará algoz cruel ou vítima de si mesmo. Como na boa literatura, a resposta nunca é tão simples ou fácil assim: como o passado, a narrativa sabe ser sadicamente imprecisa e é, justamente por isso, excelente.


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