Valor Econômico
Publicado em 06/06/2014


As vozes narrativas de Cristovão Tezza
Com "O professor", Cristovão Tezza se consolida como "maestro" do manejo das frases em nossa literatura, sem perder a densidade

Noemi Jaffe

O professor doutor Heliseu da Motta e Silva leciona filologia românica, está velho e prestes a ser homenageado em sua faculdade. Seu nome - Heliseu - é de um outro tempo. Um tempo em que pessoas ainda se interessavam por filologia românica. O mesmo parece ser verdade também para suas ideias e sua realidade, que, de alguma forma, nunca se coadunam com o que está acontecendo à sua volta. Enquanto frases em latim ou "a verdadeira gramática universal" habitam suas maneiras e sua psique, corre lá fora um tempo real, com desejos, insatisfações e acidentes de percurso que ele, em seu tempo lento e hesitante, parece não se dar conta.

Entre outras razões, essa defasagem entre o tempo do professor e o tempo do real justifica o recurso ao fluxo de consciência, às frases longas e precisamente interpoladas e às transições imperceptíveis de foco narrativo, além do curto tempo em que o romance transcorre.

É como se, em paralelo aos acontecimentos - muitos e misteriosos - que ocorrem ao longo da narrativa, e que resumem praticamente a vida de uma família durante 30 anos, o leitor acompanhasse também os desvãos de uma memória muito mais vagarosa e antiga, cujos pensamentos se passam em cerca de apenas uma hora. O professor acorda e começa a se preparar para ser homenageado. Esse curto tempo de preparação é o suficiente para que ele rememore sua vida, suas frustrações e culpas, a situação política do Brasil e seu posicionamento esquivo, mas, principalmente, seu relacionamento com Mônica.

Cristovão Tezza, com esse romance que, de alguma maneira continua o anterior, "Erro Emocional" - pelo trabalho com o tempo e com a construção de frases -, se consolida como uma espécie de "maestro" das vozes narrativas e do manejo das frases em nossa literatura, isso sem nunca perder a densidade e o interesse do entrecho.

Em "O Professor", a transição da terceira para a primeira pessoa ocorre em função do estranhamento que esse professor anacrônico tem em relação a si mesmo, sua vida e sua imagem no espelho. "Quem é ele?" passa a ser, aqui, a mesma pergunta que "Quem sou eu?". As frases longas, altamente construídas, também ganham o sentido desses descaminhos da memória, em que tudo se mistura: gramática e traições, ciúmes e citações, velhice e desejo.

Enquanto Heliseu cogita sobre a forma de dar início a seu discurso de agradecimento, o leitor fica conhecendo Mônica, Therése, seu relacionamento problemático com o filho homossexual e suas ideias sobre política, língua e filosofia: "Estatuto da moralidade? Estatuto do direito consuetudinário? Estatuto, que porra de estatuto - é uma gosma, tudo isso, as coisas grudam sem nitidez nem contorno na alma, como alguém pode levar uma vida assim, sem jamais saber o que está acontecendo com ele ou com os outros?!".

Pensamentos como esse se misturam a especulações sobre gramática e língua, mas sempre com um sentido dúbio, que aponta para a ambiguidade das relações familiares e políticas no país: "(...) há um duplo sentido permanente na realização da língua brasileira. É como se o nosso ouvido se concentrasse, a todo momento, diretamente no segundo plano, não no prrimeiro" e "No Brasil, o duplo sentido se grramaticalizou", diz Théreze, a francesa jovem e sedutora.

É essa mesma personagem que dispara uma das muitas frases sintéticas e geniais desse romance sobre o humano, o Brasil e a linguagem: "O Brasil sempre foi um refinado sonho francês, um croissant utópico".



"O Professor"
Cristovão Tezza Record 240 págs., R$ 32 / AA+

AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco


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