O Estado de S.Paulo
São Paulo, 30 de julho de 2012 .

Marcas pessoais na prosa moderna

Ubiratan Brasil

Em autobiografia literária, Cristovão Tezza investiga os mistérios da criação

Escrever deixa vestígios e marcas pessoais. Cristovão Tezza, autor de um dos romances mais premiados dos últimos tempos, O Filho Eterno, sabe como poucos dessa crença, pois, até atingir o sucesso e conquistar o reconhecimento, trilhou por caminhos duvidosos, sofreu a tentação imposta pelo estilo dos autores que idolatra e lutou até encontrar seu formato literário. A trajetória dessa formação está em O Espírito da Prosa, lançado agora pela Record e cujo subtítulo é totalmente explicativo: uma autobiografia literária.

De fato, ao apresentar um romance de formação às avessas, Tezza parte de sua experiência para relembrar e analisar a criação da prosa, especialmente dos anos 1960 e 1970. O ponto de partida é uma questão que, apesar das diversas explicações, nunca parece totalmente resolvida: o que leva alguém a escrever? Sobre o ofício que abraçou como exclusivo desde 2008, Tezza respondeu às seguintes questões, por e-mail.

O que é ser escritor? Isso define algum tipo de identidade, ou é apenas um ofício?

O ato de fazer literatura se define inicialmente pela aventura de assumir um risco pessoal: é território em que nada está garantido, em nenhum aspecto. Você leu alguns livros e imagina que pode fazer parte dessa família disfuncional. Não é, portanto, um ofício no sentido comum do termo. Como escrever é um processo que organiza a linguagem com uma intensidade única, acabamos lapidando a nós mesmos, como alguém que monta as peças da própria armadilha, de onde depois é difícil escapar.

Há aspecto litúrgico na prosa?

Nós, escritores, às vezes gostamos de nos imaginar sacerdotes de alguma ordem superior, ou pelo menos especial. Mas, deixando a metáfora de lado, acho que a liturgia da prosa é apenas a sua solidão. Um escritor passa muito tempo de sua vida sozinho, escrevendo. Isso deve afetá-lo em alguma coisa, com certeza.

A literatura reflete a realidade de hoje, complexa e acelerada?

Bem, digamos que a literatura não existe para “dar conta” de algo no sentido prático da expressão. E a realidade não é uma entidade monolítica, ainda que, para cada um de nós, no dia a dia, ela pareça exatamente assim. Sobre a realidade acelerada, eu diria que a literatura é lenta por sua própria natureza; ao contrário do jornalismo, a literatura não tem pressa. E justamente por sua lentidão em assimilar e responder ao mundo, que ela consegue níveis de complexidade subjetiva extraordinários e que resistem mesmo com o desaparecimento das condições que lhe deram origem. O mundo de Dostoievski não existe mais, mas continuamos lendo Crime e CastigoA Máquina do Mundo, de Drummond, continuará contando sua história, mesmo quando acabem as estradas de Minas e os seus “sinos roucos”.

Até que ponto a literatura pode resistir à homogeneização que parece marcar a escrita atual?

A linguagem é o ser mais multifacetado das criações humanas. A aparente homogeneização da “linguagem visível” formalmente instituída (a linguagem da imprensa, da escola, do poder político, do judiciário, etc.) esconde uma floresta subterrânea de sentidos, gramáticas, códigos, intenções, duplicidades. É neste pântano ambíguo que a literatura respira. E é claro que ela deve resistir aos discursos homogêneos; aliás, ela só tem sentido se o fizer.

Há quem acredite que o romance tem uma dívida com o policial, que sempre uma estrutura muito clara, com personagens, investigação, demanda, conclusão. 

Ao pensar o romance, devemos separar o aspecto estritamente composicional (a estrutura da trama, que se faz com as categorias que você citou) da “linguagem romanesca”, o modo como o narrador vê e enfrenta o mundo. Uma das questões centrais do romance policial não está propriamente na trama, mas na valorização do suspense, a ansiedade do que vai acontecer. Na origem, o suspense do policial é uma categoria moderna, porque supõe a incerteza objetiva, material do mundo, que sai definitivamente das mãos do destino ou dos deuses. Assim, a composição policial respondia às exigências de uma diferente percepção da realidade, de fundamentação materialista, que continua viva entre nós. Mas composições semelhantes podem servir a visões de mundo místico-regressivas, como na chamada literatura de fantasia.

A história atual se mostra mais interessada em detalhes. A literatura está tomando o seu lugar?

O que está acontecendo talvez seja um processo inverso: o historiador começa a se deixar influenciar pelos modos ficcionais de percepção da realidade. É uma fronteira difusa. E, às vezes, no entusiasmo, levamos gato por lebre por uma entrega pouco pensada a um certo relativismo universal que, em última instância, nega a realidade objetiva. Mas, se o historiador mantém o rigor quanto aos fatos, os processos ficcionais da linguagem podem dar uma dimensão extraordinária à percepção histórica. Ao começar a escrever O Espírito da Prosa, fiz questão de incluir a minha história pessoal no que penso sobre a literatura, e isso deu ao livro um efeito “ficcional”: a composição de algumas cenas, o modo de entrar neste ou naquele tema, a margem declarada de incerteza, etc. A diferença é que fiz um esforço direto de não me afastar de mim mesmo: sou eu que falo ali, objetivamente, e não um narrador.

Por que o conto parece estar desprestigiado? 

Difícil dizer - é preciso separar o aspecto puramente comercial (livros de contos vendem sistematicamente menos que romances) do literário. Os contistas Dalton Trevisan e Rubem Fonseca têm um imenso e merecido prestígio.

Por que vivemos tempos tão cheios de desgosto?

Não sei dizer - é muita coisa ao mesmo tempo para a gente dar conta de uma tacada. Mas eu vejo o tempo atual, no Brasil (é quase um paradoxo), mais como eufórico do que como depressivo. O que talvez seja um traço cultural nosso, não sei. De qualquer forma, como ficcionista, penso sempre em pessoas isoladas - e aí tem de tudo.

Impressiona o poder da ficção em interferir na realidade e, até, de criar novas realidades?

Sim - pensando esquematicamente, dá para dizer que começamos a escrever para imitar a realidade, mas o resultado é sempre uma outra realidade, uma espécie de hipótese ficcional, que desafia pela raiz o tempo presente concreto de onde veio sua imagem.


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