FOLHA DE LONDRINA - FOLHA2
Londrina, 28 de abril de 1996


TEZZA


Zeca Correia Leite
Sucursal de Curitiba

Em meio à entrevista toca o telefone. Cristovão Tezza vai atender e do outro lado da linha um amigo dá-lhe a boa nova. Há poucos dias o jornal "Correio Braziliense" trouxe uma reportagem com a poetisa e escritora Adélia Prado, que de vez em quando deixa a quietude mineira pra dialogar com jornalistas da grande imprensa. No final, tinha um "ping-pong", entrevista de perguntas e respostas rápidas. No item "um escritor", a célebre Adélia não pestanejou: "Cristovão Tezza". Uma alegria a mais para o autor de "Trapo, que teve suas páginas adaptadas ao teatro, com o galã televisivo Marcos Winter vivendo o papel título. Catarinense de Lajes, 44 anos, professor de português na Universidade Federal do Paraná, Tezza continua sendo notícia com seu último romance, "Uma Noite em Curitiba", lançado no final do ano pela Editora Rocco. O livro está rendendo. Enquanto segue uma bem-sucedida carreira - até agora o seu melhor lançamento -, outros enredos começam a ganhar feição no íntimo do escritor.

Folha 2 - Sendo você um escritor em constante evolução, depois de "Uma Noite em Curitiba" tem outro livro em preparo?
Tezza - Por enquanto estou escrevendo mentalmente, não me decidi a começar a redigir. Não tenho título ainda, estou também com vários projetos paralelos. São dois projetos de romance, um está mais maduro. Outra coisa é talvez mexer com alguns contos antigos, reescrever como exercício.

Folha 2 - Sobre o romance, poderia dizer do que se trata? Qual é o enredo, a temática?
Tezza - Não tenho nada ainda, por enquanto está só fervendo na minha cabeça. Posso dizer que a primeira cena se passa no Cemitério do Barigüi. Eu sempre quis começar o livro com uma cena de enterro, de preferência com uma garoa.

Folha 2 - Como vai a carreira de "Uma Noite em Curitiba"?
Tezza - Muito bem, acima das expectativas. Está tendo uma venda boa, não tenho idéia completa porque demora um pouco para se ter a noção de retorno. Mas em novembro e dezembro foi surpreendente, teve uma saída muito boa. O importante é que a recepção crítica foi excelente. Talvez tenha sido o meu livro mais bem recebido, dos dez que lancei. Desses dez, sete considero maduros. Os imaturos, que teria que reler, são "Cidade Inventada", "O Terrorista Lírico e "O Gran Circo das Aménicas".

Folha 2 - O êxito é um reflexo dessa maturidade?
Tezza - Êxito é algo relativo. É verdade que essa coisa de fora, de se ter uma boa resposta é uma situação confortável para quem produz arte em geral. Você quer ser reconhecido. Mas não há relação necessária nessa receptividade com a qualidade ou maturidade.

Folha 2 - Escrever tomando Curitiba como personagem: ela é um universo?
Tezza - Como seria qualquer cidade. Ela me interessa como espaço urbano. A minha linguagem literária se sustenta num registro realista. Me sinto à vontade com esse tipo de informação realista - realista entre aspas - para o leitor. Como se trata de uma geografia que domino, resolve minha literatura como espaço, geografia e linguagem. Mas não sou de modo algum escritor regionalista.

Folha 2 - Foi dito por Wilson Martins que cronologcamente você seria o sucessor de Dalton Trevisan. A sua Curitiba é mais ensolarada?
Tezza - O próprio Wilson Martins usou uma expressão interessante, ele fez uma definição muito fina dessa questão que tem sido negligenciada quando se fala de Curitiba, que é o nosso olhar corrosivo. O gosto pela sátira, pela crueldade. Eu tive, na minha juventude, grandes influências com relação a esse tipo de olhar. Uma das companhias literárias que tive é de Jamil Snege. Quem o conhece sabe que ele é um sujeito capaz de perder um amigo, mas não perder a piada. Acho essa coisa em Curitiba muito forte, muito viva. Ao mesmo tempo, Wilson Martins dizia que eu era o herdeiro desse tipo de olhar curitibano cruel, mas com um toque mais tolerante.

Folha 2 - E o Dalton?
Tezza - Dalton Trevisan é cruel de uma forma magnífica. Ele dá uma limpidez na visão de mundo; não é aquela crueldade mesquinha. Sou bastante impiedoso como narrador, os meus personagens são impiedosos, as vozes que escrevem meus livros são vozes impiedosas, mas acho que tenho um toque de tolerância. Tenho uma relação de empatia com meus personagens, mesmo os mais terríveis e desagradáveis.

Folha 2 - E a cidade tem mais luz?
Tezza - Curitiba, mais luminosa? Não. Tenho a impressão de que continua sendo uma Curitiba mental, que é a grande Curitiba. a abstrata, a que está na cabeça dos curitibanos, não aquela dos cartões postais. A da estação tubo, da coisa bonita, não me interessa. Ela é uma cidade confortável, claro, mas com isso não se faz literatura. Se faz literatura com pessoas, com que se passa em sua cabeça.

Folha 2 - Do que o escritor se alimenta? Você anda pelas ruas, capta imagens das pessoas?
Tezza - Não sou, digamos, coletor de informações literárias. Tem escritores que fazem isso e bem. Há coisas e fatos do dia-a-dia que podem render alguma coisa. Mas isso é eventual. Diria que é um substrato de infância mesmo, de uma história da minha vida que acaba aparecendo em cada palavra que escrevo.

Folha 2 - De maneira geral, como anda a literatura?
Tezza - A literatura não tem mais o espaço que teve no século passado ou mesmo há 50 anos. Ela virou uma linguagem mais especializada, mais estratificada. Saímos do século passado, em que a grande porta de entrada para qualquer informação relevante no mundo era o livro, para um mundo totalmente multifacetado. Hoje tem cinema, rádio, televisão e dentro dela milhões de coisas; o livro também é uma diversificação brutal. O produto jornal, a revista com outras linguagens que não a literária. Agora falando como professor de português: nas gramáticas normativas, que ensinam a nossa língua, todos os exemplos dos itens gramaticais são extraídos de escritores. O que é muito engraçado - a herança de um mundo em que a única referência da palavra escrita era a literatura. Hojé a literatura representa 10% da palavra escrita, talvez nem isso. Você tem jornais, revistas. E onde está a verdadeira língua padrão do português escrito. Não está mais na literatura. Você não vai querer levantar uma gramática baseada num texto de Guimarães Rosa. Não dá, isso não é padrão.

Folha 2 - Isso quer dizer que o livro agoniza?
Tezza - De jeito nenhum. Alguns tipos de livros certamente têm vida curta, como as enciclopédias. Isso o computador vai dominar completamente. Mas o romance vai continuar tendo seu espaço. Achava engraçado quando diziam que o romance morreu. Seria o mesmo que dizer que o homem morreu, porque a narrativa é uma coisa absolutamente fundamental na vida das pessoas. Até para a aquisição da linguagem. A criança aprende a falar ouvindo histórias. O processo de ouvir histórias é uma coisa universal, ela é a condição da linguagem. Isso não vai morrer nunca. Há sempre um momento de silêncio que deve ser preservado na vida humana. O livro é esse momento.

Folha 2 - O livro como elemento fisico continuará existindo, ou ele será engolido pelo computador? De certa forma estará se acabando o romantismo?
Tezza - O livro continuará existindo, mesmo porque nao dá para imaginar que cada um terá um computador no bolso, que vai ler um livro na tela. E óbvio que milhões de pessoas não chegaram ao feijão com arroz, nem ao livro quanto mais à tela do computador. O livro de bolso, que se lê no ônibus, em metrô vai existir sempre. E leve, funcional, barato. É um objeto que não vai desaparecer.

Folha 2 - Você leria um romance numa tela de televisão?
Tezza - Com certeza não. Inclusive a leitura na tela é desagradável, até que se consiga uma tecnologia melhor. Você não agüenta muito tempo lendo coisas no computador. Você produz coisas, mas a leitura é pesada, a vista não agüenta. Isso talvez seja uma questão para se discutir daqui a 200, 300 anos. No horizonte da nossa vida o desaparecimento do livro não existe.

Folha 2 - Como está a literatura brasileira hoje?
Tezza - É muito difícil a gente falar do estado contemporâneo da literatura. Tem que ter um certo tempo de descanso, de distância para ver o que sobrevive. Literatura não é uma coisa imediatista. Eu acho que ela está passando por um processo de transformação de uma linguagem literária dos anos 60/70 para uma outra. As mudanças sociais do Brasil, a urbanização violenta do País, que deixou de ser agrário para ser urbano, isso ainda não refletiu claramente na literatura. Nossa literatura parece que é de um povo camponês. Se pegar os grandes nomes, as grandes referências, Erico Venissimo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa parece que somos um País agrário e não somos mais. Isso certamente está em ebulição. Com certeza está sendo produzida uma literatura urbana que vai refletir, pensar esse momento de transformação muito forte da nossa cultura. E que a gente não consegue pegar com a mão, não sabe onde está.

Folha 2 - É este o seu caminho?
Tezza - Diria, modestamente falando do meu trabalho, que eu faço uma literatura urbana contemporânea numa medida que certamente tem mais gente fazendo. Que certamente vai ter, por um filão aberto por Rubem Fonseca, ou João Antonio. Quer dizer: há uma certa tradição apontando para essa direção. Sem falar no grande escritor brasileiro, Machado de Assis, que já lembrava no século passado que a cidade é o espaço romanesco por excelência.

Folha 2 - O reflexo da urbanização ainda não aconteceu por quê? Seria a falta de novos talentos?
Tezza - Não sei. Acho que o processo é muito lento. A literatura está se contaminando, talvez, de uma certa histeria de show biz. Não aparece um escritor com a rapidez com que surge um cantor que de repente vende 300 mil cópias. A nossa rua é mais estreita, mais longa e mais sofrida. Os escritores começam a aparecer no Brasil em geral depois dos 40, dos 50 anos. Não acredito em falta de talento. Deve ter muita gente boa escrevendo. As vezes você não consegue acompanhar tudo que editam. Confesso que eu não consigo acompanhar a produção contemporânea brasileira. Tem muita coisa sendo produzida e ainda não sedimentada; aquele joio do trigo que só o tempo vai separar.

Folha 2 - Num País de pouca leitura, muito Sidney Sheldon e Paulo Coelho na lista dos mais vendidos incomoda o escritor?
Tezza - Não deveria, porque acho o seguinte: do ponto de vista editorial os escritores que vendem menos deveriam ficar satisfeitos com os que vendem muito e sustentam a editora. É um investimento de alto risco editar 3 mil exemplares; custa muito caro. Esse tipo de literatura de auto-ajuda, por exemplo, não é nenhuma novidade. Já nos anos 50 "Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas", de Dale Carnegie, vendeu milhões. Ele era o Lair Ribeiro de sua época. Esse é um nicho de produção que sempre deu lucro. O que acho é que eventualmente caiu o nível. Na minha juventude lia Herman Hesse com certo olhar místico. Era um altíssimo padrão literário; hoje as coisas são mais simplistas. A questão de se ler pouco é um pouco em função da falta de escolarização no País. É muito pequeno o número de pessoas que têm acesso ao livro ou interesse pelo livro. Na medida em que a faixa pequena potencialmente capaz de ler, for colocada num patamar social um pouco acima, haverá uma explosão imensa do livro no Brasil. Quando se pergunta o que se pode fazer pela literatura, um dos aspectos fundamentais é alimentação, escola, biblioteca, informação. Automaticamente o livro vai crescer nesse espaço. (Toca o telefone; do outro lado da linha alguém cita Adélia Prado)

Folha 2 - Você pode revelar o teor desse telefonema?
Tezza - Um amigo meu ligou para dizer que Adélia Prado, num ping-pong no "Correio Brasiliense", citou Cristovão Tezza, romancista curitibano, autor de "Trapo", "Juliano Pavolini" e outros livros. Isso me deixa feliz da vida porque acho Adélia Prado uma poeta magnífica, uma grande voz da nossa poesia. E o tipo de elogio que nos toca bem.

Folha 2 - Você sabia que ela lia seus livros?
Tezza - Mandei "A Suavidade do Vento" a ela, anos atrás, ela respondeu com um cartão, mas depois perdemos o contato. Não sabia que ela acompanhava meu trabalho.

Folha 2 - Falando em Adélia Prado, como anda a poesia?
Tezza - Acho que estamos numa fase muito rica do ponto de vista de quantidade e produção. Talvez nunca se tenha publicado tanta poesia no Brasil como hoje. O que eu recebo pelo correio, o que se tem publicado de edição de autores... Tem gente que torce o nariz para esses livros, mas Druminond publicou seu primeiro livro com dinheiro do próprio bolso. A poesia tem um trajeto muito semelhante nesse sentido ao do romancista, que faz edições locais até depurar. Com certeza ótimos poetas. Desta geração estará saindo na renovação poética. Recebi um livro de Ruy Espinheira Filho, da Bahia, com coisas belíssimas. O Brasil sofre do ponto de vista de divulgação que na verdade é uma questão extraliterária. Há uma centralização absoluta em São Paulo e Rio. Se você não aparece lá, não existe. O jornalismo regional está começando a renascer, mas durante muito tempo você não tinha um espaço regional da tua aldeia, e isso é importante. Aqui no Paraná a gente sofreu muito com isso: ou você saía lá ou não existia nem aqui. Agorà está mudando, o jornalismo daqui está tendo uma dimensão diferenciada, uma preocupação menos limitada.

Folha 2 - O paranaense ainda precisa do aval de São Paulo e Rio para ser aceito aqui?
Tezza - Eu temo que sim. Mas não é só aqui, é um fenômeno do Brasil inteiro. A gente vive uma brutal centralização. Todo escritor quer sair em São Paulo e Rio, porque é uma referência que vai te dar um salto. Comigo foi assim, segui a cartilha direitinho. Cheguei a publicar quatro livros aqui e não existia. Não tinha referência, crítica. Mesmo porque os veiculos de Rio e São Paulo muito dificilmente dão espaço a um livro que não seja publicado por uma grande editora. Eles têm até um critério editorial para isso: De que adianta comentar um livro de poesia da Conchinchina que ninguém nunca vai encontrar em livraria nenhuma?



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