Revista Cult, nº 202
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São Paulo, junho de 2015.

As transições de Cristovão Tezza

Manuel da Costa Pinto

O escritor, que faz parte da história da Cult, fala sobre os principais momentos do seu percurso literário


Pouco depois que a CULT foi criada, em 1997, Cristovão Tezza lançou o romance Breve espaço entre cor e sombra (1998) - que acaba de ser reeditado com título mais sintético, Breve espaço. Nascido em Santa Catarina, mas há muito tempo radicado em Curitiba (cidade que se tornou uma das personagens centrais de sua ficção), Tezza já era um escritor de obra extensa e reconhecida.

A partir do romance O filho eterno, porém, ele cria uma nova perspectiva narrativa, que, em entrevistas, debates e conversas informais, costuma chamar de "realismo reflexivo" - definição certeira de um autor que, mesmo tendo abandonado o ensino de língua na Universidade Federal do Paraná, também atua como crítico literário, ensaísta e, mais recentemente, como cronista de jornal.

Poucos escritores brasileiros, aliás, têm a consciência literária de Cristovão Tezza, que em O espírito da prosa (2012) recensou seu próprio percurso formativo não como necessidade de explicar sua literatura, mas de firmar o ponto de vista de que a ficção vive "vozes alheias" - na contramão do autocentramento e da intransitividade de boa parte da prosa do século 20, por trás da qual o ensaísta identifica a crença de escritores e teóricos de que teriam encontrato o núcleo duro da poética (para além dos gêneros), fazendo da linguagem uma finalidade em sim mesma.

É sobre essas diferentes vozes, presente não apenas em seus romances, mas também nos diferentes gêneros que pratica, que Cristovão Tezza fala nessa conversa com a revista que, em seus 18 anos, teve o escritor como entrevistado e como colaborador - e que, sobretudo, sempre acompanhou as fraturas e mutações de sua literatura.

CULT - O romance Breve Espaço entre cor e sombra, de 1998, parecia estar em continuidade com seus livros anteriores (em que a tensão estava mais nas situações ficcionais do que no discurso narrativo). Daí você publica O fotógrafo (2004) e O filho eterno (2007), em que essa tensão parece se crispar numa prosa que se autoexamina o tempo todo. A que você atribui essa mudança de dicção? Houve influência de autores como J. M. Coetzee ou Philip Roth nessa mudança?

É muito difícil definir as variáveis que nos transformam na vida e na literatura, e perceber como se dá a passagem de uma para a outra. Breve espaço foi um momento de transição para mim – de certa forma, já é um romance bem mais autorreflexivo, para usar a sua definição, do que os anteriores. Com Trapo, Aventuras provisórias, Juliano Pavollini, A suavidade do vento, O fantasma da infância ou Uma noite em Curitiba, os romances que me fizeram escritor, eu era predominantemente um observador da realidade, que é em geral a espinha dorsal de todo narrador.

Com Breve espaço, o observador enfim começa também a ser observado, para dizer com simplicidade. Imagino que esta virada do olhar, com o seu poder corrosivo, é mais consequência da idade – então alguém rumo aos 50 anos – do que da teoria literária ou de refinamento filosófico. Ao mesmo tempo, em 1998 comecei meu doutorado. Passei quatro anos sem escrever ficção, lendo teoria e preparando uma tese sobre a concepção de prosa e poesia de Mikhail Bakhtin, pensador da linguagem e da literatura por quem até hoje mantenho uma devoção honesta.

Terminada a tese, que esgotou meu projeto acadêmico, voltei ao meu território e escrevi O fotógrafo. Todos os meus temas tradicionais estavam lá: a solidão, a família, a vida urbana, as relações amorosas, Curitiba. Mas, vendo daqui, percebo que o escritor já era outra pessoa. O livro seguinte foi O filho eterno, que representou uma revolução na minha vida literária e pessoal. Quanto às influências estritamente literárias, eu não consigo localizá-las. Philip Roth foi para mim uma leitura dos anos 1980 e 90; eu o absorvi como um gênio romanesco, um Balzac do século 20. Já Coetzee foi uma descoberta mais recente, que, mal definida numa impressão, seria como a literatura da inapelável corrosão dos afetos, que, no entanto, sempre latejam ao fundo em busca de ar. Bem, pensando em “macro-literatura”, para adaptar um termo da moda, cada vez mais eu sinto atração, como leitor, pela toque de racionalidade da clássica prosa narrativa em

CULT - Como isso se conecta com as reflexões de O espírito da prosa? Aliás, por que você decide escrever um livro com o subtítulo “uma autobiografia literária” com sua obra em pleno andamento? língua inglesa.

O espírito da prosa nasceu de um cruzamento de acasos com uma velha obsessão pessoal – ou um discreto ressentimento, para dizer a palavra exata: a sensação de que a literatura que eu fazia, do final dos anos 70 até meados dos anos 90, era tudo que eu não deveria ter feito como escritor sintonizado com o seu tempo. Aos meus olhos – por tudo que eu lia, ouvia e sentia – aquele havia sido um período de hipertrofia das poéticas da prosa, por assim dizer, e de demonização radical do prosaico. A célebre morte do romance teve mais necrológios no Brasil do que em qualquer outra parte do mundo; como resultado, o inesgotável potencial da literatura narrativa desaprendeu-se entre nós.

A obsessão era enfrentar esta questão com alguma racionalidade teórica, o que de certa forma tentei fazer na minha tese (Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo). Mas eu queria me incluir no problema, e para isso o texto acadêmico era insuficiente.

Ao mesmo tempo, pelo sucesso de O filho eterno, pela minha opção de me demitir da universidade e pela proliferação de eventos literários no país, passei a dar palestras sobre meus livros e sobre literatura em todo lugar, e num momento achei que eu, de tanto falar sobre isso, já estaria maduro para um ensaio sobre a minha formação – o foco seria o momento em que me transformei em escritor.

Mas há outra razão: escrever, para mim, é uma forma mais precisa de conhecimento – apenas uma parte incerta já está na cabeça antes da primeira palavra escrita; o que realmente importa vem na viagem, e eu queria esmiuçar meu próprio processo criativo com mais clareza. Assim nasceu O espírito da prosa. Chamei de “autobiografia” justamente para marcar a diferença da ficção – no ensaio, em cada linha está presente uma “pressuposição de verdade”; em todo ensaio, o narrador desespera-se para ser idêntico ao autor (o que, na ficção, é mortal).

CULT - Tanto Um erro emocional quanto O professor apresentam um recurso narrativo de concentração de tempo em que os fatos/reflexões narrados estão todos encerrados, respectivamente, num único dia ou numa única ação bastante “ritualizada”, que assim se distendem fazendo tudo caber nesse lapso de tempo. Como isso se relaciona com a ideia da prosa romanesca como movimento de “fechamento e afastamento do evento da vida” (O espírito da prosa)?

Eu imagino que sejam coisas distintas, mas talvez haja relação. A unidade de tempo e lugar dos fios narrativos de O professor (alguém que se levanta, toma café, toma banho, e sai para receber uma homenagem) e Um erro emocional (o curto tempo de encontro entre um escritor que é recebido por uma leitora, acompanhados por uma pizza e uma taça de vinho) foi um acaso que amadureceu tecnicamente na minha literatura. Não surgiu como um “caso pensado” – foi acontecendo livro a livro. O fotógrafo já é basicamente isso, mas num arquipélago de personagens separadas. E isso está se repetindo no romance que escrevo agora, que são três momentos concentrados da mesma personagem. Tem alguma coisa do teatro (que foi uma influência forte na minha infância de escritor) e do cinema (atualmente, vejo um filme por dia). A diferença fundamental é que a expressão viva dos processos silenciosos do pensamento – vital na literatura – é sempre problemática no teatro e no cinema, que, por assim dizer, precisam viver a vida “em voz alta”.

Mas esse formato, a narrativa que se expande a partir da unidade concentrada de tempo e lugar, também dá uma margem especialmente adequada ao tipo de mergulho reflexivo que se tornou o centro do que eu escrevo hoje, e que começou com O filho eterno: um narrador que, em ondas contínuas de percepção, aproxima-se e afasta-se do personagem, transitando quase que sem costura entre a primeira e terceira pessoas, entre um ponto de vista e outro. Mas veja: são explicações a posteriori, talvez redondas demais. Eu nunca tive nenhum “projeto narrativo” nesse sentido. Os livros simplesmente foram acontecendo.

CULT - Olhando para o conjunto da sua obra, dá para perceber uma recorrência da relação assimétrica entre o mestre/professor/escritor e seus leitores/pupilos/entrevistadores etc. Como (e por que) isso traduz sua maneira de representar/duplicar a realidade?

É verdade; nunca pensei nisso antes. Parece que em muitos dos meus livros há sempre uma relação de autoridade – fora do personagem principal – que precisa ser destruída. Fazendo uma divagação meio irresponsável, posso ver duas fontes nesse impulso. A primeira é a marca do tempo histórico, para arriscar uma interpretação sociológica: a geração que cresceu e se educou nos anos 60 e 70 tinha no DNA o horror à autoridade e ao poder. Mas isso, é claro, só faria literatura panfletária – o que, aliás, se fez muito. A segunda é psicanalítica, mas foi historicamente potencializada pela primeira, quando se tentava conciliar Marx e Freud – é preciso destruir o poder do pai e da família. A revolta que se disseminou nos anos 1960, que repercute profundamente até hoje e de certa forma moldou o tempo presente, deu esse sentido difuso de inadequação e fratura, em contraponto a um paraíso que está em lugar nenhum. Acho que muito disso rebateu no que eu escrevo. No meu caso, isso foi marcado também pela morte do meu pai, nos meus 7 anos, e na busca insegura de âncoras. Os pais (ou mestres e gurus, como em Breve espaço) parece que são sempre figuras pesadas nos meus livros, inimigos a ser batidos – inclusive em O filho eterno, quando eu me incluí no problema. Bem, agora que eu sou avô, começo achar a família uma grande ideia que foi muito mal assessorada pela história recente...

CULT - Nesses últimos 18 anos você também se tornou crítico literário (escrevendo resenhas e uma coluna quinzenal para a Folha de S.Paulo) e cronista. Como surge esse tipo de trabalho? E, sendo você um autor que sempre questiona o mantra estruturalista de que tudo em literatura tende para uma linguagem intransitiva, que distinção faz entre a “fatura” dos diferentes gêneros que pratica?

O resenhista nasceu em 1995 de uma conversa sobre o jogo de xadrez e com o seu convite para resenhar para a Folha de S.Paulo um livro do Arrabal que tinha o jogo como tema – dali não parei mais. Foi um trabalho que tinha tudo a ver com a fase acadêmica da minha vida, e também uma certa educação para o texto em jornal, que é substancialmente diferente (em extensão, linguagem, liberdade e objetivo) tanto da prática acadêmica estrita quanto da literatura de ficção.

Eu sempre gostei de escrever resenhas e ensaios literários – é uma linguagem que dá vazão ao meu lado “racionalizante”. É também um modo de aprofundar meu olhar sobre a literatura – como eu disse, para mim escrever é uma forma especial de revelação e conhecimento. E, do ponto de vista formal, considero a resenha o “soneto da crítica”, uma arte exigente.

Já a crônica foi outro convite, bem mais tarde. Em 2008 a Gazeta do Povo, e Curitiba, me convidou para assinar uma crônica semanal na página 3, num momento de completa reformulação gráfica e editorial do jornal. Jamais havia escrito crônicas na vida, mas meti a cara e fui aprendendo. Foi uma experiência fascinante – além da rigorosa limitação de espaço e da pressão da produção regular, sente-se a onipresença imediata do leitor: uma crônica é uma conversa em voz alta que exige uma etiqueta sutil do narrador. Em 2013 lancei uma antologia, Um operário em férias (Record). E agora no segundo semestre sai mais uma, A máquina de caminhar – nesta, incluí um longo um ensaio sobre a crônica, que chamei de “Um discurso contra o autor”. E com isso encerro minha carreira de cronista. Foi uma bela experiência, mas se esgotou para mim. Agora, já passando dos 60 anos, quero me concentrar unicamente na ficção. Escrevo cada vez mais devagar, e senti que a crônica começava a drenar minha literatura. Talvez mais adiante eu volte à crônica, quando perceber que não tenho mais ficção a escrever.

Sinto os três gêneros que pratiquei – ficção, ensaio e crônica (poderia incluir a poesia também, com algumas incursões secretas...) – têm substâncias bastante diferentes. A ficção acaba por englobar todas as outras linguagens (na verdade, apenas na superfície ela tem uma linguagem própria – ela vive das vozes alheias); o ensaio exige uma “pressuposição de verdade” que recusa a ficção (ou teria de assumir a linguagem como intrinsecamente fraudulenta, uma decisão que não consigo aceitar); e a crônica é um gênero basicamente jornalístico, mesmo quando faz literatura (o que faz muito).

CULT - Em O espírito da prosa há uma questão que surge a todo momento – “descobrir o que leva alguém a escrever”. E o livro traz uma resposta pessoal: o sentimento de inadequação. Como leitor que é, você acha que essa resposta pode ser extrapolada para todos ou pelo menos a maioria dos escritores?

Acho que sim, por falta de uma resposta melhor. Talvez aqui esteja o ponto de contato entre a ideia de escrever literatura como um verbo intransitivo, na clássica formulação barthesiana – mas eu prefiro transferir a intransitividade da estrutura mesma da linguagem (como uma entidade autônoma, um fantasma que fala sozinho, uma metáfora com uma certa atração no irracionalismo contemporâneo), para o gesto responsável do escritor: ele quer escrever. Nada o pressiona a isso, exceto o seu desejo. É difícil imaginar que alguém faça na vida uma escolha tão absurda – escrever – sem alguma fratura a resolver. Pode ser um sentimento contínuo de infelicidade, um ressentimento de origem – em suma, uma inadequação. O interessante é que, para o escritor que não deseja se enganar, a escrita nunca promete nada: a passagem do caos das sensações para a expressa limitação do texto escrito será sempre um tiro no escuro.


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