JORNAL DA TARDE
São Paulo, 11 de agosto de 1996

Edição Comemorativa da 14ª Bienal do Livro, inteiramente produzida por escritores.
Coordenação de Ivan Ângelo e Teresa Ribeiro


UM BRASILEIRO, EM CAMBRIDGE, ISOLADO NA LÍNGUA PORTUGUESA

O escritor Cristovão Tezza no Seminário de Literatura Britânica Contemporânea


A última flor do Lácio continua a mesma do tempo de Olavo Bilac: esplendor e sepultura. Para o esplendor, basta algum Drummond. Já a sepultura é a de sempre: onde fica o Brazil? Que língua mesmo nós falamos?
Essa dura sensação de isolamento foi a que sentir no Seminário de Literatura Britânica Contemporânea, em Cambridge, de 10 a 18 de julho. O Seminário é uma idéia simples, um investimento anual não muito caro mas extremamente funcional para a divulgação da literatura britânica, nesses tempos em que o Império já não é mais aquele. Convidem-se cerca de 60 tradutores (da língua inglesa) e jornalistas de países tão variados como Brasil, Eslovênia, Turquia, Índia, Egito, Estados Unidos, Cingapura, Finlândia, Espanha, Eslováquia, e assim por diante. Entre esses, alguns escritores, também de língua inglesa ou para ela traduzidos, que serão o tempero exótico do evento.

Somos os oversea fellows, muito bem-tratados pelo British Council, todos devidamente instalados no Downing College em período de férias, curtindo durante dez dias uma extraordinária convivência com gente de letras do mundo inteiro. Do Brasil, além do autor deste texto, compareceram Ana Maria Machado, Eric Nepomuceno e João Silvério Trevisan, como ficcionistas, e Daniel Piza, como jornalista.
O horário nobre, é claro, reserva-se ao melhor da literatura britânica contemporânea, em leituras, palestras e discussões, em geral de uma hora e meia cada, num timing controlado à perfeição pelos coordenadores. Aliás, dois deles - Cristopher Bigsby e Damian Grant - eram tão perfeitamente ingleses que eu tinha a sensação, às vezes, de que eles não eram ingleses, mas dois atores contratados para representar o papel de ingleses. Essa é uma graça única, a rara qualidade de um povo capaz de fazer humor com o seu próprio estereótipo.
Nas palestras, alternavam-se monstros sagrados, como Malcolm Bradbury, Doris Lessing e George Steiner, com outros desconhecidos entre nós, como Michael Holroyd ou Anne Devlin. E sem preconceitos: a atual dama do crime inglês, P. D. James, também esteve lá, falando sobre romance policial. Curiosamente, falou para meia-platéia: parece que também no resto do mundo o autor popular não é popular...

Mosaico multicultural

E, no espaço destinado aos estrangeiros, cada um tinha de 10 a 15 minutos para ler uma amostra de sua produção, numa seqüência ao acaso, misturando-se turcos, brasileiros, croatas, alemães, indianos, lendo poemas, contos, trechos de romance, num mosaico multicultural e fragmentário, cujo ponto de liga era justamente o império, este sim soberano, da língua inglesa: no nosso caso, e daí a sensação de isolamento que vivi, não há solução fora desse barco. Italianos, russos, espanhóis, egípcios, nigerianos, filipinos, todos conheceram alguns fragmentos de nossa literatura unicamente porque ela estava escrita em inglês. Agora, parece óbvio. De longe (ou daqui), nem tanto.
Obviamente que, em nossa pátria literária, a língua portuguesa, e nela, o português brasileiro, a idéia de conversão não existe nem no mais remoto e delirante pragmatismo - mas pode nos lembrar que talvez possamos fazer mais alguma coisa por ela além de produzir nossa boa literatura. Até mesmo os ingleses, que nem precisariam fazer propaganda, deixando que a inércia da história fizesse o trabalho, até mesmo eles têm uma política bastante articulada a respeito. O Seminário de Cambridge, por exemplo.
Na seqüência implacável de palestras, havia sempre espaço para algumas gazeadas. Às vezes, o próprio seminário respirava: passamos um dia em Strattford-upon-Avon prestando homenagem ao Bardo e assistindo a uma montagem de Macbeth (de que, aliás, ninguém gostou, aquele futurismo a neón que não se explicava, mas não deve ser fácil tocar uma companhia de Shakespeare, o fantasma é grande demais...).

Confraria errática

Desespero mesmo só batia quando se aproximavam as 11h da noite, o momento terrível em que, à primeira vista, o Reino Unido fecha implacavelmente todas as portas onde se pode beber. Era uma confraria errática e errante, um que outro eslavo, dois brasileiros, um espanhol nervoso, a moça da Croácia, um turco avulso, um par de italianas, aquela ansiedade atrás de um pub, um balcão, uma garrafa, um boteco de esquina... Nada! O horror! O horror!
Claro, a gente sempre acaba descobrindo o imigrante (legal ou ilegal) que fica aberto até mais tarde, a partir do qual desenvolvemos uma certa sociologia bêbada: houvesse mais bares abertos nas madrugadas da Inglaterra, Jack o Estripador e seus imitadores sinistros não teriam cometido tantos crimes sórdidos, na negra solidão das ruas curvas e fechadas noite adentro.
E já que estamos na terceira ou quarta Lager, e como o JT, sábio, quer um artigo e não um romance, melhor voltar a Cambridge e encerrar o Seminário, com o impecável humor de Mr. Bigsby, na festa de despedida. Contou ele que, indo à Índia como adido do Conselho Britânico, perguntou educadamente a um indiano que árvore era aquela ali adiante, tão bonita.
- Ah, essa é a árvore onde os ingleses enforcaram o meu avô.
E ante a profunda consternação de Mr. Bigsby, o nativo tranqüilizou-o:
- Oh, por favor, não se sinta assim. Afinal, são coisas como essas que nos aproximam...



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