TELEFONES

Cristovão Tezza


O telefone mais antigo da minha vida eram duas pequenas latas ligadas por um barbante comprido. Do sótão da minha casa, arremessei uma delas sobre os fios da rua, que o vizinho recolheu e lançou sobre a fiação do poste da outra calçada, e depois à janela do segundo andar, para onde correu em seguida. O aparelho não funcionou: o barbante fazia uma barriga preguiçosa sobre a rua, apoiado nos fios elétricos. Alguém gritou:
- É preciso esticar!

Foi o que fiz do meu lado, primeiro andando para trás até bater com força a cabeça numa viga - nem doeu - depois puxando o barbante pelo furo da lata para dar um nó mais curto. Afinal o fio tensionou-se inseguro no ar da rua - estranhamente, ele pesava - e falei alguma coisa no bocal do meu telefone, não muito alto, ou a experiência não faria sentido. Em seguida, trocamos posições: com a lata enterrando a orelha ouvi a voz do amigo, nítida, excitada, feliz, longínqua como do outro lado do Atlântico:
- Tá funcionando!

A experiência encerrou-se abrupta com o meu pai me arrancando dali pelo pescoço, a chineladas, e ele mesmo se encarregou de destruir as instalações da nossa linha exclusiva. Não lembro o que ele disse: algo como eletrocução, raios, corpos carbonizados, chuva, trovões, desespero, morte e fim. Era o ano de 1958. Meu pai morreu um ano depois, não de telefone, que nunca tivemos, mas por bater a cabeça na calçada num acidente de lambreta, o veículo da época.

Um segundo telefone só apareceu na minha vida alguns anos depois, nos meus treze anos, agora na Curitiba de 1965. Um telefone à revelia. Aconteceu assim: aprendi datilografia, sozinho, nas minhas tardes livres, seguindo as instruções de um volume ensebado que acompanhava a pequena máquina portátil que a família herdou e ninguém podia tocar. Minha mãe ia trabalhar e eu abria aquela maravilha, colocava papel e repetia a lição, metódico: asdfg, asdfg, asdfg. Lembro da melhor frase, quando eu já compunha frases sem olhar para o teclado, os dez dedos rápidos e exatos: Kant nasceu em Koenisberg, Kant nasceu em Koenisberg, Kant nasceu em Koenisberg.

Três domingos mais tarde, resolvi fazer uma demonstração para a família, em meio a um encontro de parentes: para espanto de todos e irritação da minha mãe, coloquei a peça na mesa da sala, carreguei uma folha de papel - Quem é que te deu ordem de mexer nessa máquina?! Vá já guardar isso! - cobri os olhos com uma faixa de pano e comecei a escrever, cego, algumas frases avulsas, uma por linha: Hoje é domingo, pede cachimbo, dois mais dois igual a quatro, verdes mares bravios da minha terra natal, amanhã tem aula de canto orfeonico. Diante do silêncio da família acotovelada às minhas costas, conferindo incrédula a exatidão do datilógrafo (Orfeônico tem acento, reclamou o irmão mais velho), tirei a máscara dos olhos e, adolescente posudo, perguntei essa pergunta difícil:
- O que vocês querem que eu escreva?

Na verdade, ninguém quer que você escreva nada; trabalhar é melhor. No outro dia, minha mãe me levou ao centro da cidade, o endereço marcado num papel. Subimos quatro lances de escadas e entramos num escritório sombrio de advocacia, paredes de um feio verde escuro e as portas imensas, de mogno. Diante do homem, ela me pintou de ouro: Bate máquina como gente grande. O senhor não quer fazer um teste com o menino? O velho relutou diante daquela criança magra, mas eram tão extraordinárias as minhas qualidades, segundo minha mãe, que valeria a pena um período experimental, meio expediente, meio salário.

Fui levado para a outra sala, onde deparei com o telefone, esse verdadeiro, o primeiro que eu via tão de perto. Negro, imponente, de chumbo maciço, com aquela roda esburacada no centro vazando para um círculo de números, e mais os dois orelhões também negros do fone, tudo ligado por um fio grosso de pano entrelaçado - tão impressionante que eu mal prestei atenção na Olivetti, também maciça, com um carro que não cabia na máquina de tão comprido. Bem, a máquina de escrever era só uma questão de força física - bem mais pesada que a portátil do meu pai, e minha datilografia perdeu velocidade - mas o telefone me punha medo: falar com os outros. Afinal sozinho na sala, levantei aquele ser compacto - de desenho tão exato que tenho até hoje nítido na memória cada traço do objeto, a contraditória leveza das curvas se fechando no alto da pirâmide para sustentar o fone pesado, sob o mistério da simetria - e ouvi pela primeira vez na vida um sinal de linha. Eu deveria rir: a lata funciona mesmo!

Passei os dois anos seguintes atendendo o telefone, pagando contas e datilografando contratos - e lendo, lendo muito que o trabalho era leve, de Crime e castigo à biografia de Lênin, de Júlio Verne a Jorge Amado, de Balzac a Erico Verissimo. E, súbito, pedi demissão. Para desespero da família e espanto do patrão, decidi me engajar numa comunidade de teatro alternativo, decididamente sem telefone: eu estava abrindo a porta generosa da utopia regressiva, a volta à natureza e ao grito primal.

Naqueles anos 70, em que os militares fundiam num só regime o pior de dois mundos, a rigidez soviética com a liberalidade paraguaia - grandes projetos qüinqüenais atravessados por intermediários em meio a um silêncio tranqüilo, só aqui e ali uma bomba, um fuzilamento sumário, um enforcado na cela, uma guerrilha pateta -, eu compartilhava agora a vida comunitária exilado em Antonina, pequena cidade litorânea, consertando relógios (fiz um curso por correspondência) e criando teatro popular junto com uma troupe inútil de cabeludos, todos sem lenço, sem documento e sem telefone, sob a liderança de um barbudo - mestre Wilson Rio Apa - que, rousseauniano instintivo, olhava com desconfiança até o advento da luz elétrica.

De 68 a 74 não me lembro de ter telefonado a ninguém. A vida era táctil, vizinha, na extensão dos olhos, do tamanho do passo - vivi plenamente a soberba da limitação e do isolamento, mas o simulacro dessa utopia particular também foi desabando. No ano de 1975, quando perambulei pela Europa fazendo bicos, reencontrei um único telefone, um instante surrealista: na estação de trem de Genebra, uma jovem sueca pendurada a um telefone público me chamou com sinais agitados. Em inglês, perguntou se eu falava francês; menti imediatamente, oui, oui! - e ela me estendeu o fone e um papel com uma fileira de números: que eu repetisse aquilo em francês. A voz do outro lado, por certo de homem, insistia angustiada: Le numerô? Le numerô? E eu, feliz por ser gentil com uma sueca, recitei as lições da professora Beatriz do Colégio Estadual, caprichando na pronúncia: neuf, neuf, deux, zero, huit, trois, trois, six, quatre...
Thank you! - ela sorriu, e arrancando o papel da minha mão correu para um táxi. Nunca entendi exatamente o que fiz, que número era aquele, quem era a voz do outro lado, o que aconteceu, mas mantenho a certeza, também inexplicável, de que a mulher era sueca. Exceto dessa vez, nos quatrocentos dias de Europa jamais telefonei. Mas escrevi cartas: foram 153, em espaço um, na pequena olivettinha, que eu levava por onde ia, como um executivo falido.

Em 1988, já casado, com dois filhos, e os primeiros livros enfim começando a chegar às livrarias, senti necessidade de comprar um telefone. Foi uma operação complexa e demorada, que envolveu um contrato cheio de carimbos e assinaturas e advertências ameaçadoras, até a transferência de um maço de dinheiro vivo para a mão de um comprador atento e tenso sob a supervisão de um intermediário - tudo isso no balcão da empresa, para maior garantia - e eis que agora eu tinha um aparelho leve, de plástico, descartável, nem de longe aquela escultura clássica de ébano sobre a mesa da minha infância.

Dois anos mais tarde, cada vez mais corrompido pela civilização, investi num aparelho de fax, que hoje repousa quase inútil aqui ao meu lado, depois de ter trabalhado bastante. Desde então as coisas foram inapelavelmente degringolando: de um computador XT sem disco rígido (que aposentou minha olivettinha), onde aprendi fascinado o esoterismo do DOS, passei a um 386 e dele, numa corrida agoniada, a um Pentium, e finalmente a esse portátil onde escrevo a crônica - e eis que o telefone reencontra a máquina de escrever, agora em conexão contínua com a internet em alta velocidade, enquanto a linha continua livre para falar. Velocidade não tão alta assim: às vezes um atraso de sete segundos, uma página travada no éter, para dele despenhar-se aqui, me dá um vazio incerto na alma. É verdade que há cada vez menos pessoas a quem telefonar, e também menos destinatários das cartas que, mais curtas, voltei a escrever, mas pelo menos parece que as pessoas voltaram a escrever, reaprendendo as letras. É visível nesse teletexto volátil a noção de brinquedo, a nostalgia das latas e dos barbantes, a intuição milionária de Bill Gates de, no rosto de sua janela, lembrar do "meu computador", "meus arquivos", "meu álbum de fotografias", "meu patinete", "minha coleção de caixa de fósforos" - nivelando para todos a utopia de um mundo adulto estacionado na idade mental dos treze anos. Mas isso é problema nosso - o fato é que o brinquedo (quase sempre) funciona.

Última derrota, também no sentido marítimo, comprei um celular que, envergonhado, escondo na gaveta, para, quem sabe, uma emergência. Às vezes jogo nele serpente, memória e lógica, só para testar a bateria.

Crônica publicada na coletânea "21 contos pelo telefone".
Editora DBA - Doréa Books and Art Ltda. São Paulo, 2001.


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