Um olhar de Curitiba

Cristovão Tezza

Texto apresentado no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, em 11 de setembro de 2003, em São Paulo, no ciclo de palestras “Viagem pelas metrópoles brasileiras: arte, história, política e cultura”, coordenado pelo professor Francisco Foot Hardman.


Minha convivência com a cidade de Curitiba está completando 43 anos. Desembarquei lá aos oito anos, vindo de Lages, Santa Catarina, em janeiro de 1961, e praticamente nunca mais saí da cidade, exceto por alguns períodos de aprendizagem em outras terras e cidades -mas sempre voltei a Curitiba. Este meu olhar sobre a cidade é na origem, portanto, um olhar estrangeiro, de alguém que, se sentindo integralmente curitibano, como eu me sinto -e toda a minha literatura testemunha isso- tem entretanto um pé para fora, um olhar de fora.

Mas este olhar de fora talvez seja mesmo um traço constitutivo das nossas capitais, na medida em que o avanço da urbanização brasileira nas últimas décadas foi inchando as cidades maiores de “estrangeiros”, com todos os problemas e conseqüências dessa história. Numa cidade maior, numa cidade de prédios, numa cidade cuja extensão já vá bem além do tamanho do nosso passo e do nosso olhar, numa cidade sem horizontes, como em geral são os centros urbanos, todas as relações de familiaridade e de intimidade mudam de dimensão.

A cidade é um espaço abstrato. Nós nos movemos menos pela contigüidade dos quintais, dos acidentes do terreno, dos espaços de referência integrados no nosso dia-a-dia, e mais por uma relação abstrata de deslocamentos; vivemos como que num mapa de metrô; o ato de subir 30 andares num elevador, percorrendo, digamos, centenas de famílias cuja existência é apenas uma idéia sem rosto, mas compactamente presente do outro lado da parede, de certo modo define a geografia urbana, a sua lógica e o seu mundo. Assim, ser “estrangeiro” é parte integrante da natureza urbana.

Toda aquela essência bucólica, essência também entre aspas, que vem definindo parte substancial da cultura de um Brasil rural, familiar, integrado e permanentemente ao alcance do olhar, do passo e da mão, como a fruta que se colhe da árvore, o sino da tranqüila missa de domingo, a praça como o espaço social do povo e de sua linguagem, tudo isso, sabemos, não existe mais.

Na verdade, nunca existiu exatamente, exceto como um projeto cultural, como construção de cultura -na verdade, uma poderosa construção cultural que até hoje tem marcas. Essa nossa suposta essência pastoril -de fato, para sermos justos, trata-se de um projeto pastoril universal, que em diferentes momentos da história, aos pêndulos ideológicos, contrapõe o idílio da vida natural à corrupção das cidades- é substituída por outra construção da cultura, vinculada às luzes de um homem mais abstrato, sem raízes, mas com muito mais direitos e com muito mais liberdade, um homem mais solitário, mas também mais poderoso, um homem que, em tese, habita não mais o quintal da infância, mas a cidade universal.

Em tese, no nosso mundo novo realmente admirável, todas as relações sociais mudam de natureza. Ninguém está mais condenado a conviver com o vizinho, como duas famílias que convivem há gerações; ninguém mais está condenado a seguir sua natureza ou o seu destino, como nos heróis épicos; a própria idéia de obediência já não é mais uma força “natural”, como a água da chuva ou a luz do sol. A obediência, no mundo urbano, expressa também uma relação mais intelectual que emocional, a expressão de uma escolha -afinal, o que define um cidadão é a sua liberdade, e a idéia de liberdade tem de necessariamente abranger todas as esferas da atividade humana, separando-se aí, de uma vez por todas, para sempre, o mundo sagrado do mundo leigo. O mundo urbano é regido pela cultura leiga -só pode ser leigo; uma cidade sagrada é uma espécie de contradição absurda.

Mas é claro que toda essa elucubração é uma elucubração urbana: isto é, na vida concreta, a cidade é um espaço de troca e de contaminações de culturas, e essas culturas vivem permanentente em contraste, pressionando umas às outras. Como por princípio a cidade não é um lugar familiar, somos todos estrangeiros nesta luta de linguagens urbanas.

Tudo para voltar a Curitiba e começar por defini-la como uma cidade de estrangeiros. Certamente trata-se de um exagero, mas para maior nitidez vamos começar por esse ponto. Localmente, uma cidade de estrangeiros porque o notável crescimento por que passou a cidade nos últimos 40 anos, passando dos 500 mil habitantes da minha infância para os quase dois milhões de hoje, povoou-a, é claro, de gente de fora, e em vários estratos sociais; pela beirada, como costuma acontecer, a periferia curitibana foi se enchendo de favelas, de ocupação de terrenos, de sub-moradias, de todo esse espectro profundamente brasileiro que define nossas migrações internas.

No miolo, por uma classe média de fora (como a minha família) que veio se transferindo para Curitiba para nunca mais sair de lá. Em Curitiba, chama a atenção, em vários ramos e atividades profissionais, o número de não-curitibanos na faixa hoje dos 40 a 50 anos -parece que, em Curitiba, ninguém é de lá. Bem, os filhos desta geração, da minha geração, já são todos curitibanos, mas são filhos que aprenderam a ver a cidade pelo olhar dos pais. De certa forma, é uma geração que mantém ainda residual o seu toque de estranheza com relação ao espaço em que vive.

E Curitiba é também uma cidade de estrangeiros pela própria população que a formou: ucranianos, poloneses, alemães e italianos terão grande relevância na definição mais profunda da cidade. Desde já, faço a ressalva de que esse é tema de sociólogos e historiadores, que saberão definir com mais rigor do que essas impressões a constituição curitibana. Mas eu gostaria de marcar alguns pontos primeiros bastante nítidos que nos definem genericamente -primeiro, o fato de os alemães terem exercido, senão uma ostensiva ou exclusiva influência, à maneira de algumas cidades catarineneses ou gaúchas, uma densa influência na vida burguesa curitibana desde meados do século XIX, estando presentes, como cidadãos urbanos, em praticamente todos os ramos de atividades. Wilson Martins, em Um Brasil Diferente (São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1989), cita, por exemplo, um tribunal de júri do século XIX constituído quase integralmente por sobrenomes alemães, o que me parece bastante significativo.

Nesse sentido, a influência alemã teria sido muito mais intensa, subterrânea e duradoura, do ponto de vista da formação da cidade, por estar entranhada nas atividades que afinal organizam os agrupamentos urbanos, do que a influência polonesa, que em geral leva a fama (lembremos Leminski se definindo como “polaco”, e as imortais “polaquinhas” de Dalton Trevisan), somando-se com a influência talvez ainda mais presente dos ucranianos.

Esse conjunto “eslavo” (mais os italianos, de que falaremos adiante), que na origem formava o cinturão verde da cidade, as colônias agrícolas, normalmente é visto como definidor maior do nosso traço típico. Os eslavos deixaram um substrato poderoso, é verdade: seria o nosso lado rural, sempre forte, aquele contraponto sagrado que nos enche de culpa e de sentimento de gravidade diante das coisas do mundo. Assim, para defini-lo numa imagem, o curitibano seria uma espécie de alemão protestante urbano com uma alma rural, católica e eslava.

Em outro momento de seu livro, numa metáfora que me parece muito feliz, Wilson Martins define Curitiba como a cidade da carteira de identidade, e não do passaporte. Em suma: o curitibano é, historicamente, um conservador. Para fazer um contraponto contemporâneo que reforça essa visão, ouvi recentemente numa entrevista um publicitário afirmar, comentando o resultado de uma pesquisa, que o curitibano consumidor é tipicamente alguém que não tem muito dinheiro, mas tem patrimônio. Em suma, ele não arrisca nada. O curitibano médio, nesta classificação impressionista que fazemos aqui, é alguém que se estabelece em algum lugar com a dimensão da eternidade, com a perspectiva familiar, com o desejo de uma profunda estabilidade da alma. O curitibano, desde sempre, parece que veio para ficar, tanto o alemão e o ucraniano de um século e meio atrás quanto o migrante dos últimos 50 anos, como eu.

Fazendo um pouco de poesia, é como se nós curitibanos ainda estivéssemos com um pé no século XIX, desembarcados nesta boa terra -Curitiba não tem morro, não tem enchente, não tem terremoto; e a lenda mais recente desse paraíso tropical sem os males do trópico, vai acrescentando até que é uma cidade fria, o que, rigorosamente, não é mais, ou que é um lugar sem assaltos, miséria ou problemas mais sérios. Bem, Curitiba sempre foi uma espécie de paraíso do projetista urbano, que em vários momentos da história via diante de si uma planura sem acidentes para ali desenhar o seu projeto abstrato. Prosseguindo: desembarcamos nesta boa terra com a esperança de aqui amealharmos algum dinheiro para consolidar algum patrimônio, um pedaço de terra, à custa de trabalho duro e honesto, obedecendo à lei e não criando problemas, e não nos misturando muito, porque o mundo é cheio de perigos e mais vale um pássaro na mão que dois voando.

Alemães, poloneses, ucranianos e mais tarde italianos e outros povos foram ocupando essa terra e ao mesmo tempo definindo-a. Se os italianos criaram, entre outros, o enclave de Santa Felicidade (o mais famoso), que a rigor parece outra cidade, cabendo nela todos os chavões simpáticos que atribuímos a eles, o riso fácil, a comida farta, o espalhafato dos restaurantes, o gosto ostensivo pelas marcas folclóricas da origem e mesmo o kitsch poderoso que vai criando uma Itália imaginária de isopor e bandeiras para consumo de ônibus de turistas (parece que em Santa Felicidade há o segundo ou o terceiro maior restaurante do mundo, e milhares de turistas desabam lá tirando fotografias de castelos construídos a fórmica, néon, pedra e plástico), coube, como já disse, aos alemães e eslavos cuidarem do coração duro da cidade, aquela estranheza primordial, quase metafísica, de quem de fato não se sente em casa em lugar nenhum do mundo, porque o mundo é uma realidade permanentemente hostil.

Curitiba não tem carnaval. Na semana do carnaval há como que um esvaziamento sinistro da cidade, uma diáspora da alegria -multidões descem em desespero para o desconforto absurdo do litoral, entupido de carros, de falta d’água, de barulho, de gente, de caos, quase sempre de chuvas torrenciais, e desaparecem da cidade. Então, os verdadeiros curitibanos, como eu, passeiam por aquele vazio agradável e silencioso -andamos quilômetros, em plena terça-feira gorda, sem encontrar em lugar algum um mínimo signo do carnaval, uma criança mascarada, um balão, uma serpentina na calçada. Nada. Aqui e ali entrevemos o clarão de uma televisão ligada, em volume não muito alto, no carnaval da Globo, que assistimos com um espanto verdadeiramente curitibano. O que faz sentido: o carnaval na televisão é essencialmente a apoteose do não-carnaval, a expressão acabada da sua derrota, o nosso triunfo.

Essa sensação de estrangeiros -parece que nunca estamos em casa, exatamente como nossos antepassados não estavam ao chegar ali- foi acrescentando mais alguns traços ao temperamento curitibano. O principal talvez seja o traço conservador, naturalmente conservador -o curitibano não gosta muito de criar caso, gritar ou exigir aos brados alguma coisa; é como se ainda houvesse um substrato mental nos dizendo que aqui não é a nossa casa. Uma espécie de “comporte-se”, silencioso e poderoso, e, quem sabe, ainda com uma aura religiosa no ar, um certo instinto de missa. E é um substrato tão poderoso que qualquer “estrangeiro” -digamos, um carioca, um catarinense do litoral ou um baiano, acostumado a viver em voz alta- ao chegar em Curitiba levará sempre um primeiro choque: súbito, sente-se que há uma fina camada de gelo entre as pessoas, um sentimento de distância, invisível mas permanente.

Em poucos dias o nosso estrangeiro já não dará tapinhas nas costas com tanta familiaridade e nem visitará ninguém sem nítidos, claros, ostensivos avisos prévios. O “apareça lá em casa”, essa mentira simpática, marca saborosa de todo brasileiro, não se ouve muito em Curitiba. Temos em geral de quatro a seis amigos, que duram uma vida inteira. Já vivi em cidades rodeado de 250 amigos, que desapareciam na primeira esquina. Observem o tom acusatório da expressão “que desapareciam na primeira esquina” -há aqui uma velada acusação contra as traições do mundo, sempre perigoso, falso e hostil, uma acusação essencialmente curitibana.

É interessante pensar no contraponto da introversão curitibana: como não somos do ramo, nossa extroversão, quando explode, é sempre excessiva, exagerada, às vezes descontrolada -é como se perdêssemos, libertados, a noção de medida das coisas. O nosso tapinha nas costas é sempre um pouco mais forte. Às vezes dói. Em dezembro de 1959, um problema de nota fiscal na compra de um pente numa loja da praça Tiradentes desencadeou um quebra-quebra monumental, verdadeiramente catártico, sem intenção de saque ou roubo, no episódio conhecido como “guerra do pente”.

Em alguns jogos decisivos entre Coritiba e Atlético, freqüentemente há uma depredação irracional de ônibus urbanos e das famosas estações-tubo, mesmo fora do perímetro ou dos limites de guerra entre torcidas, depredação mais irracional ainda se sabemos que o transporte coletivo de Curitiba é um dos melhores e mais eficientes do país.

Para não dizer que isso é apenas problema de raiz social (que certamente também é), idêntico a episódios semelhantes no resto do Brasil, podemos lembrar um jornal curitibano de literatura, com ressonância nacional, o Rascunho, que conta entre seus colaboradores com ótimos nomes da vida literária brasileira, cuja editoria se compraz às vezes em linchar bons poetas e bons escritores com estardalhaço, na primeira página, a título de crítica literária, o que na verdade parece ser apenas um desejo irrefreável de chutar a canela alheia com uma agressividade assustadora. Uma espécie, digamos, de “extroversão cultural”, um desejo secreto de quem não quer se comportar na missa de domingo mas não tem o trato cotidiano do debate, algo que de algum modo pudesse civilizar a discordância. A nossa discordância, represada por muito tempo, quando enfim aparece, tem um quê de anormal. É claro que não podemos “psicologizar” os pontos de vista a ponto de esvaziá-los intelectualmente -mas, afinal, conteúdos são formas.

Esse conservadorismo de raiz da cultura curitibana é também uma expressão institucional. O seu reflexo mais evidente é o jornalismo da cidade, historicamente porta-voz dos governos locais e nacionais -o que talvez também explique, lá no fundo, a nossa eventual “extroversão cultural”, uma compensação descompensada da docilidade oficial.

Um dos símbolos da cidade é a Universidade Federal do Paraná, cuja criação -ela é a mais antiga do país- tinha como um de seus ideários definir uma identidade regional, o que em si já é uma confissão de ausência de identidade. Há assim desde a origem uma espécie de oficialismo que perpassa todas as atividades culturais de Curitiba. Um oficialismo que, de cima para baixo, na própria constituição do Estado do Paraná, historicamente, foi uma espécie de “faca com o queijo”, porque encontrava diante de si uma população, digamos, “estrangeira”, pronta a não criar caso e a obedecer a regulamentação oficial que ia lhe delineando os passos.

Lembro um episódio: quando o cinto de segurança ainda não era obrigatoriedade nacional, o prefeito de Curitiba baixou uma lei pioneira obrigando seu uso na cidade. No dia seguinte, metade dos motoristas curitibanos, em geral selvagens no trato do pedestre, portavam orgulhosamente o cinto. Já no Rio, a mesma lei provocou uma horda de camelôs vendendo camisetas com o cinto desenhado no peito; e em Porto Alegre, a exigência levou a protestos públicos veementes contra aquele abuso de poder.

Pois bem, o curitibano aceita a regulamentação oficial, mas, como vingança, desenvolve um dos seus talentos marcantes, e dos mais saborosos, que é a autofagia. Um dos espaços clássicos da cidade se chama “Boca Maldita”, e, como tudo na cidade, acabou se institucionalizando numa espécie machista de clube de velhos que é uma hilariante caricatura do pior conservadorismo. Mas tem um substrato verdadeiro: gostamos de falar mal dos outros, principalmente dos outros curitibanos. E, é claro, falamos à sorrelfa, entre nós mesmos, porque no jornal, tradicionalmente, não podemos falar mal de ninguém. Sobre essa compulsão crítica -aliás, lembremos que Wilson Martins é de Curitiba, e tem de fato um olhar essencialmente curitibano sobre o mundo-, recordo uma crônica do saudoso Jamil Snege, ótimo escritor curitibano, que tinha o título de “como se tornar invisível em Curitiba”. Para se tornar invisível em Curitiba, dizia Jamil, basta ter um talento genuíno. Tenha talento, dizia Jamil, e a cidade vai tornar você invisível. Você vai desaparecer.

O interessante deste olhar do Jamil Snege, com quem ao longo dos anos absorvi boa parte de minha alma curitibana, é que havia um toque fatalista nesta concepção de mundo. Porque Jamil, um dos olhares mais ferinos da cidade, jamais quis sair de Curitiba, e eu digo tanto sair literariamente de lá quanto fisicamente; de fato, Jamil Snege, que eu saiba, viajou poucas vezes para fora da cidade. Além disso, recusou todas as oportunidades de ser editado por grandes editoras, cuidou de cada livro seu com uma atenção absolutamente artesanal e tinha a pachorra de ele mesmo distribuir os volumes (sempre rapidamente esgotados) em duas ou três livrarias da cidade.

O publicitário Jamil, aliás um publicitário brilhante, jamais fez publicidade da própria obra. Em todo esse modo de viver a literatura perpassa a idéia de “atitude”, o ato de escrever não como o ato de produzir bens de cultura, inseridos confortavelmente num mercado de livros, mas como uma expressão existencial. Há nessa atitude, que considero curitibaníssima, um misto de pudor e timidez, uma certa idéia docemente provinciana de que “aparecer” é algo agressivo, ou, igualmente, é algo que nos deixa desarmados à mercê do olhar alheio. É melhor, é mais seguro nos escondermos.

Pois bem, chegamos agora, nessa seqüência de impressões curitibanas, num dos mais estranhos paradoxos da cidade de Curitiba. Esse espaço do mais profundo e metafísico conservadorismo oficial tornou-se, ao mesmo tempo, uma sólida referência nacional e internacional de modernidade urbana e qualidade de vida. Lembro de que, anos atrás, em Roma, alguém me disse absolutamente maravilhado ao saber que eu era de Curitiba: “Você é de Curitiba!? A terceira melhor cidade do mundo em qualidade de vida!” -acrescentou o romano, encantado pela imagem da cidade.

Bom curitibano, e naturalmente autofágico, levei um choque com aquele desconcertante elogio, ainda mais de um habitante de Roma, cidade que eu percorria com o prazer deliciado de quem conhece uma espécie rara de paraíso -pois aquele romano dizia que a minha cidade era certamente melhor que a dele. Mas em que sentido alguém que mora no centro de Curitiba, como eu, num prédio cercado de fios elétricos que ameaçam, digamos, eletrocutar aquele que tentar invadir meu espaço, e que mesmo assim freqüentemente acorda de madrugada, num escândalo de janelas que se abrem, com sirenes da polícia e alarmes de carros estourados em troca de toca-fitas, pode dizer que mora na “terceira melhor cidade do mundo em qualidade de vida”?

Eu poderia dizer que Curitiba tem, no inverno, o céu azul mais bonito do Brasil -de fato, é um céu belíssimo-, mas o curitibano não pode contemplá-lo com freqüência, porque, como nossas calçadas são as piores do mundo (aqui não é autofagia -quem vai a Curitiba comprova isso), temos de andar olhando para o chão, o que também faz sentido e dá uma certa solidez ao princípio curitibano universal de nunca dar o passo maior que as pernas. Olhar o céu e andar ao mesmo tempo são atividades incompatíveis para o curitibano.

Bem, para não dizerem que este olhar é mesmo o olhar de um estrangeiro -afinal, eu nem nasci lá, como já me disseram várias vezes- invoco o testemunho de Dalton Trevisan, o grande mestre da cidade e um dos maiores escritores do Brasil. Entre as muitas maldições curitibanas que ele escreve, primeiro em folhetos quase clandestinos e depois, refeitas à exaustão naquela oficina impiedosa de textos que é a cabeça daltoniana até a edição em livro, há um poema chamado “Essa cidade não é a minha” (“Veja Paraná”, 25 de setembro de 1991), em que ele comenta justamente a fama universal da cidade.

“uma das três cidades do mundo de melhor qualidade de vida
segundo uma comissão da ONU
ora o que significa uma comissão da ONU
não me façam rir senhores
nem sejamos a esse ponto desfrutáveis
por uma comissão de vereadores da ONU”

Neste mesmo poema, Dalton vai contrapondo com aquele seu humor irritadiço e violento uma espécie de “nova Curitiba” àquela Curitiba de sua infância, que, aqui de fora, podemos chamar de “literária”. Que “nova Curitiba” será essa? Diz ele:

“ai da cólera que espuma os teus urbanistas
apostam na corrida de rato dos malditos carros
suprimindo o sinal e a vez do pedestre
inaugurada a caça feroz aos velhinhos de muleta
se não salta já era
em cada esquina os cacos da bengala de um ceguinho
quem acerta primeiro o paraplégico na cadeira de roda

não me venham de terrorismo ecológico
você que defende a baleia corcunda do pólo sul
(...)
não te reconheço Curitiba a mim já não conheço
a mesma não é outro eu sou
(...)
nenhum cão ou gato pelas tuas ruas
todos atropelados
(...)
nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista
toda de acrílico azul para turista vez
(...)
não me toca a tua glória dos fogos de artifício
o que vejo na mídia é tua alminha violada e estripada
(...)
Curitiba foi não é mais”

Entre as muitas leituras que podemos fazer sobre esta espécie de réquiem daltoniano sobre a cidade, podemos reconhecer inicialmente apenas o traço do tempo: Curitiba cresceu, com o crescimento vieram os carros, os prédios, a falta de tempo, o fim dos cães vadios na rua, o fim do rio Belém, numa palavra, o fim do clássico “idílio rural” de que falávamos no início. No caso de Dalton, trata-se de um idílio bastante particular, mas no qual se reconhece, enfim, por mais violentas que sejam as imagens, o nosso Brasil exótico, familiar, sensual. Veja-se:

“o que fica da Curitiba perdida
uma nesga de céu presa no anel de vidro
o cantiquinho da corruíra na boca da manhã
um lambari de rabo dourado faiscando no rio Belém
quando havia lambari quando rio Belém havia
o delírio é tudo meu do primeiro par de seios
o primeiro par de tudo de cada polaquinha”

Claro, esse “idílio” daltoniano é atravessado com violência pela corrosão da ironia, e, talvez, nessa sociologia ligeira que se arrisca fazer aqui, pelo inconfundível toque curitibano das culpas mais medonhas. Ele não quer nada com a “Curitiba oficial enjoadinha ufanista”. O que ele quer é

“da outra que eu sei
o amor de João retalha a bendita Maria em sete pedaços
a cabeça ainda falante
(...)
o necrófilo uivador nos túmulos vazios das três da manhã
(...)
verde não te quero verde
antes vermelha do sangue derramado das tuas bichas doidas
e negra dos imortais pecados de teus velhinhos pedófilos”

Enfim, uma certa alma curitibana se define inteira em poucos versos daltonianos, uma Curitiba profundamente mental, que resiste teimosa a se definir pelo seu espaço (o espaço como alguma coisa irrelevante):

“por favor não me dê a mão
não gosto que me peguem na mão
essa tua palma quente e úmida
odeio o sinal de polegar no meu punho
(...)
bicho daqui não sou
no exílio sim órfão paraguaio da guerra do Chaco”

Poderíamos perguntar: por que diabos um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos se dedica com tanto afinco a amaldiçoar sua cidade? Numa perspectiva estritamente literária, Dalton realiza o paradoxo de, ao invocar um suposto paraíso rural, uma suposta vida idílica anterior ao progresso massificador e abstrato da urbanização, destrói completamente o imaginário romântico -fortíssimo na nossa tradição literária, desde as Iracemas de antanho- por fazer desse passado não o kitsch da casinha de sapé à margem de um rio tranqüilo com uma bela árvore nos dando a sombra, mas a expressão bíblica de horrores monumentais, mas quem sabe autênticos, essenciais, telúricos, verdadeiramente divinos, “o medieval pátio dos milagres na Praça Rui Barbosa”.

A ironia é um modo também de se auto-destruir, de não deixar nem por um segundo que o conforto de uma frase feita se acomode em algum idílio possível -porque o que Dalton diz, em cada texto que escreve, é que não há salvação possível na face da terra. Talvez não seja muita liberdade poética afirmar que essa descrença essencial, com o seu toque calvinista -temos de continuar a trabalhar, sem esperar resultados- defina em boa parte a alma curitibana, muito mais do que qualquer projeto urbano, política de transporte ou declaração da ONU.

Mas voltemos ao ponto central, a imagem de Curitiba. Certamente nenhuma outra cidade brasileira conseguiu construir uma imagem tão indiscutivelmente positiva, no imaginário brasileiro e internacional, como Curitiba. A mesma Curitiba que, para Dalton Trevisan é a “Curitiba oficial enjoadinha ufanista / toda de acrílico azul para turista ver”, é para milhares de pessoas uma espécie de paraíso urbano possível, a cidade cultural do Brasil, o grande centro do teatro brasileiro, a cidade ecológica brasileira, a cidade que tem o melhor transporte urbano, etc.

Que sem dúvida muito disso é realmente um factóide “para turista ver” -curiosamente na capital brasileira que talvez menos tenha atração turística, pois de fato não há quase nada de realmente interessante na cidade-, é fato também que Curitiba tem algumas qualidades urbanas (mesmo contando com o motorista que já foi definido como o mais mal-educado do Brasil) que são de causar inveja em muitas cidades. Começa pela sua escala -é uma cidade ainda razoavelmente pequena, o que nos dá tempo, o bem mais precioso de todos. Para as classes médias, a cidade inteira está ao alcance da mão. Para quem mora longe, a cidade talvez tenha o melhor transporte público do país.

Pois bem, essa Curitiba famosa resultou de um projeto urbano de longo prazo muito bem-sucedido, e que em sua essência, para sorte dos curitibanos, não foi essencialmente modificado ou desestruturado por nenhum dos diferentes governos que ocuparam a cidade nos últimos 40 anos. Aliás, para fazer justiça, é preciso estender mais esse projeto urbano de longo prazo: na verdade, Curitiba tem uma tradição de cuidado urbano verdadeiramente centenária. Um único exemplo: na década de 20 o prefeito Garcez do Nascimento (que construirá o primeiro arranha-céu de Curitiba, o edifício Garcez), planejou uma série de grandes avenidas no lado sul da cidade (Visconde de Guarapuava, Sete de Setembro, Silva Jardim, etc.), amplas e modernas, onde não havia ainda praticamente nada, e que servirão para sustentar, sem estragos, impacto ambiental ou desapropriações traumáticas boa parte da célebre organização viária implantada na cidade 50 anos depois.

Fiquemos nas últimas décadas, quando de fato se ergueu a Curitiba que chamará a atenção do Brasil e do mundo. A história desse projeto, a partir de um não especialista, como eu, pode ser definida assim. Em 1960, quando cheguei criança em Curitiba, a cidade, embora bastante funcional e sempre bem organizada, não tinha de fato expressão alguma. Curitiba não era nada; não tinha, a rigor, nenhuma identidade. Havia um slogan mentiroso que chamava Curitiba de “cidade sorriso”; em outros momentos, era chamada de “cidade universitária”, e aqui a definição fazia algum sentido pela importância fundamental da Universidade Federal do Paraná para Curitiba. Mas definir uma capital de Estado como “cidade universitária” é muito pouco.

Curiosamente, uma pesquisa recente promovida publicitariamente por uma instituição bancária perguntava qual deveria ser o “símbolo de Curitiba”, e a Universidade Federal ganhou. Houve uma curiosa polarização política nessa pesquisa sem nenhum rigor, digamos, “científico”, porque todas as outras possibilidades (o Jardim Botânico, a Ópera do Arame, etc.) haviam sido criadas pelos governos Jaime Lerner, justamente nessas últimas décadas. Assim, a escolha da universidade na enquete, uma escolha inescapavelmente conservadora, teve um certo sabor ideológico de “contestação”.

É um detalhe interessante porque explica muito do projeto curitibano moderno, que vou chamar aqui sem muito rigor de “projeto Lerner”, para lembrar o nome que se imortalizou sendo três vezes prefeito da cidade e duas vezes governador de Estado e que promoveu, via executivo, todas as grandes transformações que deram à cidade a cara que ela tem hoje. Pois bem, sobre uma cidade que como dissemos não tinha expressão nenhuma -apenas aquela alma curitibana fortíssima que para mim define a cidade- o projeto Lerner criou quase que inteiramente a imagem de uma nova cidade, imagem projetada sobre alguns conceitos urbanos bastante modernos, a partir de eixos de transporte coletivo, política de ocupação de espaços e um certo ideário de valorização do pedestre, simbolizado no início dos anos 70 na transformação da rua XV de novembro em um calçadão. (Veja-se que, nem de longe, é um técnico ou um político que escreve aqui: apenas um habitante da cidade que cresceu com ela ao longo de 45 anos e que nela se fez escritor – minha autoridade, se cabe essa palavra aqui, é estritamente literária.)

Essa mudança estrutural da cidade foi acompanhada, sempre, de campanhas publicitárias extremamente profissionais; tudo que se fazia, do ponto de vista físico, recebia um equivalente abstrato na programação visual, de certa forma um “logotipo”, que a cada época marcava a imagem da cidade. Ainda mais -essas marcas visuais, parte essencial do projeto da imagem da cidade, sempre mantiveram uma extraordinária unidade: a cidade inteira sempre esteve submetida, na criação dessa curitiba urbana dos últimos 40 anos, a um conceito visual unitário, centralizado e criado de cima para baixo. Por isso se diz que Curitiba é a cidade da figura única: temos um único arquiteto, um único projetista, um único escritor, um único artista plástico, e daí por diante. As marcas visuais percorrem grande número dessas novas atrações turísticas, inventadas recentemente: Jardim Botânico, Ópera do Arame, Rua 24 horas, etc.

Concomitantemente a isso, viveu-se em Curitiba um processo de revitalização de espaços históricos, de preservação de fachadas, etc., com uma Fundação Cultural bastante ativa na criação de espaços de cultura, como cinemas, museus, etc., o que também deu uma marca forte à cidade. E também uma marca “estrangeira” -nunca conheci um curitibano da área cultural (exceto os funcionários da Fundação) que em algum momento não reclamasse de que a Fundação Cultural na verdade era também “só para inglês ver” e que os artistas locais estavam às moscas. Eu mesmo reclamei muito disso, mas hoje, cinqüentenário, acho que não é um grande problema. É apenas realismo: Curitiba precisa mesmo de uma injeção cultural de fora, porque somos poucos.

Um exemplo: o “Perhapiness”, evento que todos os anos celebra a memória do poeta Paulo Leminski, na sua versão 2003 convidou para a série de mesas redondas, se não estou enganado, 15 nomes importantes de fora, como Patrícia Mello, Rubens Figueiredo, João Gilberto Noll, e apenas dois nomes de Curitiba, um jornalista e um escritor. Pensando bem, é uma boa política: os grandes nomes voltarão falando maravilhas de Curitiba, e os dois curitibanos continuarão a falar mal da cidade, como sempre. Se convidassem 15 curitibanos e dois estrangeiros, o encontro seria massacrado pelos próprios palestrantes, com apenas dois elogiando lá fora. A mesma coisa acontece com o Festival de Teatro, uma iniciativa privada muito bem sucedida que tem contado sempre com o apoio da Fundação. Jamais conversei com um ator ou diretor local que, em algum momento, não criticasse o festival por se sentir alijado da festa, fartamente elogiada no resto do Brasil e até do mundo.

Temos, até aqui, um bom projeto urbano vinculado a um apurado senso publicitário, que não só propagandeava a boa nova, como lhe dava uma cara gráfica, imediatamente identificável, em Curitiba e fora dela. E, afinal, o produto às vezes correspondia, pelo menos em parte, à propaganda. Mas há outros fatores importantes a considerar nesse processo. Um deles é o fato de que a implantação do projeto se fez a partir de governos impostos pela ditadura militar. Isto é, Jaime Lerner foi prefeito indicado duas vezes. E, naqueles anos tecnocráticos, ele gostava de alardear que “não era político”, e não ser político soava (ainda hoje aliás) como uma grande qualidade.

Quem viveu a virada dos anos 60 para os anos 70 sabe o componente psicológico, e mesmo ético, que pesava nas considerações sobre o poder político. Lembro que meu primeiro voto na vida foi nulo, em protesto contra a ditadura -um erro histórico, aliás, porque contra ela a única força realmente útil seria o voto, como o tempo acabou demonstrando.

Polarizado o Brasil entre os que não queriam votar e os que não queriam o voto, a nova Curitiba ia se fazendo com a faca, o queijo, a imprensa e o poder na mão. É claro que, pensando retrospectivamente, tivemos alguma sorte, porque o mesmo poder, imprensa, faca e queijo em outras mãos poderiam simplesmente destruir a cidade, como aconteceu em tantas outras partes do Brasil: Curitiba era de fato uma espécie de tabula rasa, como expressão cultural, identidade regional ou extensão geográfica.

Sobre esse silêncio prévio, tanto do curitibano comum que por natureza é silencioso e está sempre pronto a obedecer a lei, e sobre o silêncio político dos que, também a faca com o queijo, distantes do círculo do poder negavam legitimidade à cidade nova que se erguia, o projeto Lerner criou, finalmente, uma Curitiba nítida, com uma cara, uma “carteira de identidade”, uma expressão e um ideário urbano de longo prazo que chegou a impressionar até os “vereadores da ONU” do texto de Dalton Trevisan. Mas não impressionava os seus habitantes, pelo menos num primeiro momento -Jaime Lerner perderá sua primeira eleição direta para prefeito da cidade que inventava.

Aliás, a idéia de que Curitiba é uma invenção de Jaime Lerner não é assim tão absurda -mas é preciso lembrar que todos os ingredientes para a invenção da cidade, incluindo aí um histórico centenário de bom planejamento urbano, estavam generosamente, até ostensivamente diante de quem tivesse a imaginação e o poder de usá-los e preencher aquele vazio que ansiava por ter uma face reconhecível.

Mas tudo isso é história. Vendo de hoje, é inegável que esses 40 anos criaram potencialmente defesas contra a crescente urbanização, inevitável, da cidade; criaram também uma certa cultura urbana, substancialmente adequada ao substrato cultural do habitante de Curitiba. Uma prova disso está, como dissemos, no fato de que prefeituras politicamente antípodas se sucederam sem de fato destroçar ou mesmo modificar a substância do projeto original, que acabou marcando profundamente a cidade.

E, como bons curitibanos, sabemos que a vida é muito mais densa, perigosa, complicada e inexcrutável do que um logotipo na parede, mesmo que seja um logotipo que funcione. Tanto melhor que seja uma boa cidade, ainda que tenha as piores calçadas do mundo, porque assim podemos, trancados em casa -o verdadeiro, o autêntico espaço do curitibano é o interior de sua casa- com algum conforto pensar na vida, trabalhar sossegadamente, contar com os quatro amigos que conhecemos há 37 anos, mas que só se vêem acertando o encontro previamente por telefone, quando então pedimos pizza e nos divertimos bastante. Afinal, o que mais podemos esperar da vida?

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