O TERRITÓRIO DO ESCRITOR

Cristovão Tezza

Texto apresentado na mesa redonda "O que é a língua para o escritor?", em 20 de março de 2000, no MAM-SP, com a participação de Fernando Bonassi e dos escritores franceses Linda Lê, Rachid Boudjedra e Mathieu Terence. Publicado na coletânea "Do músculo da boca", editado pelo programa Santiago de Compostela, Capital Européia da Cultura, 2000 - Encontro "Galego no mundo - latim em pó".


A língua é o espaço que forma o escritor. Tentar compreendê-la (essa tarefa impossível) será, portanto, um bom caminho para compreender a atividade da literatura. A questão é que há tantas línguas e isso no universo do mesmo idioma quanto há escritores. Quando falo de língua, não me refiro apenas ao simples depósito de palavras que circulam em uma comunidade, nem a um sistema gramatical normativo às vezes mais, às vezes menos estável numa sociedade, numa estação do ano, num sexo, numa região, numa família ou em parte dela, num lugarejo, numa classe social, naquela rua, num determinado dia, num livro e quase nunca num país inteiro.

A língua em que circula o escritor jamais é uma entidade unitária. Não pode ser, em caso algum, uma ordem unida. Porque a matéria da literatura não é um sistema abstrato de regras e relações, uma análise combinatória de fonemas ou um conjunto de universais semânticos como tem sido a língua para uma corrente considerável dos cientistas da língua. Justamente por serem abstratos, justamente por serem apenas fonemas e justamente por serem universais, esses elementos primeiros são desprovidos de significado servindo a todos, não servem a ninguém. De fato, não chegam a se constituir em "língua", uma vez que deles se suprimiu a outra parte indispensável da palavra: o falante.
O falante o homem que tem a palavra é portanto o verdadeiro território do escritor: a língua real é ele. E em que sentido ele pode ser considerado uma entidade universal? Isso interessa, porque no exato momento em que uma palavra ganha vida, na voz do falante, ela ganha também o seu limite: o pé no chão, que não é qualquer chão, o espaço, que é esse espaço, e não outro, o ar que se respira, o tempo, o dia, a hora, toda a soma das intenções muito específicas convertidas no impulso da palavra; e, é claro, a ninguém interessa o que a palavra quer dizer de velha (isso até o dicionário sabe), mas o que ela quer dizer de nova, isto é, o que é novo e surpreendente no que se diz. Esse espetáculo das vozes que falam sem parar no mundo em torno, ou nesse mundo em torno, nesse exato momento, é a vida indispensável de quem escreve. É nessa diversidade imensa e imediata que se move quem escreve, o ouvido atento.

Mas há ainda um terceiro complicador na palavra, além da sua matéria mesma e além daquele que fala. Porque, se desdobramos a palavra, descobrimos que quem lhe dá vida não é exatamente o falante. Ninguém no mundo fala sozinho. Mesmo que, numa redução ao absurdo, isso fosse possível ou seja, uma palavra que dispensasse os outros para fazer sentido ela seria uma palavra natimorta, um objeto opaco à espera de um criptólogo que lhe rompesse o isolamento, como um Champollion diante de uma pedra no meio do caminho, mas então a suposta pureza original auto-suficiente estaria destruída.
Assim, surge outro território essencial de quem escreve: o território de quem ouve, a força da linguagem alheia, dos outros, num sentido duplo interessa tanto o que os outros nos dizem (e somos nós que damos vida a essas palavras que vêm de lá, antes mesmo de se tornarem voz), quanto o que nós dizemos (e são eles, os outros, que dão vida ao que dizemos, antes mesmo de a gente abrir a boca). Para a palavra e para tudo que significa, os outros não são uma escolha, mas parte inseparável. Mesmo solitários, de olhos e ouvidos fechados, isolados na mais remota ilha do mais remoto oceano, no fundo de uma caverna escura e silenciosa, mesmo lá ouviríamos, em cada palavra apenas sonhada, a gritaria interminável dos que nos ouvem.

Enquanto isso, é sempre bom lembrar que nesse trançado infinito de vozes o que trocamos não são símbolos e códigos neutros; nem sinais de computador, nem mensagens unilaterais; a vida da linguagem está no fato de que não ouvimos ou lemos apenas sons ou letras, mas desejos, medos, ordens, confissões; de que não falamos ou escrevemos sinais, mas intenções, pontos de vista, sonhos, acusações, defesas, indiferenças. Ninguém entende a linguagem como certa ou errada (exceto nos cadernos escolares), mas como verdadeira, mentirosa, bela, nojenta, comovente, delirante, horrível, ofensiva, carinhosa... É exatamente nesse pântano inseguro dos valores que se move o escritor. E é apenas nesse terreno de valores que a forma da palavra pode ganhar seu estatuto estético, a sua dignidade poética, historicamente flutuante.
A língua do escritor é uma entidade necessariamente impura, contaminada, suja de intenções, povoada previamente de muitas outras línguas (do mesmo idioma ou fora dele), de milhões de vozes. Se nessa diversidade essencial está a riqueza de quem escreve, nela também está a sua fronteira necessária, e, em última instância, a sua ética. Para formar a minha palavra, eu preciso da palavra do outro compartilhando com ela a força e o valor de origem esse o meu limite. A palavra que eu tomo em minhas mãos, como ensina Bakhtin, não é nunca um objeto inerte há sempre um coração alheio batendo nela, uma outra intenção, uma vida diferente da minha vida, com a qual eu preciso me entender. Assim, a minha liberdade de criação, a minha palavra, tem na autonomia da voz do outro o seu limite. O que parece a natureza mesma da linguagem, o seu duplo, talvez possa se transformar, para o escritor, na sua ética.

Para encerrar, voltamos à questão primeira: se tudo que significa, significa aqui e agora, na urgência do tempo da vida e no limite do espaço dos nossos passos, em que sentido a língua é uma entidade universal? Entre a língua que falam os brasileiros e a que falam os franceses e os americanos e os nigerianos e os esquimós e os tupis, e dentro de cada uma delas, entre os que são a e os que são b, há uma relação universal de sinais ou uma relação muito específica de força? Só vejo uma resposta: de força, é claro, mas pode se tornar universal, desde que a universalidade se entenda como uma escolha, uma penosa construção da cultura e nunca como uma dádiva dos deuses, uma imposição política ou uma essência mesma da linguagem. O desejo da comunhão universal será sempre, também, matéria prima do escritor, porque a arte, ao contrário dos homens, ou é generosa ou não existe mas isso, mais uma vez, é outra história.

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