O império do gelo
Folha de S. Paulo, Mais! - 20/8/2000
A chave, de Junichiro Tanizaki

Cristovão Tezza

O diário, como forma composicional, tem sido um dos recursos literários mais produtivos da modernidade; ao mesmo tempo em que esse gênero nega por princípio a onisciência narrativa, não abdica entretanto de um ponto de vista concreto, histórico e temporal sobre o mundo, um ponto de vista relativo e não confiável. A desconfiança resulta não apenas do olhar unilateral próprio da convenção do diário, mas também da simulação explícita de quem o assina. A novela "A Chave", do japonês Junichiro Tanizaki (1886-1965), um escritor praticamente desconhecido no Brasil mas popular em seu país, é uma amostra admirável do potencial de ambigüidade que o gênero permite. O próprio Tanizaki declarava que só o que o interessava na literatura eram as mentiras.

"A Chave" é o cruzamento de dois diários que se alternam ao longo de alguns meses - o do marido ("Ikuko, minha adorável esposa, realmente não sei se você está lendo meu diário ou não") e o da mulher ("Nessas horas ele com certeza deve descer ao salão de chá, retirar meu diário da gaveta da cômoda e lê-lo"), e gira em torno do casal, da filha Toshiko e do amigo Kimura. O sexo está presente em cada uma das linhas da novela, mas não se espere nada explícito, picante ou explosivo - o livro é antes o império do gelo que o dos sentidos. "A Chave" será, também, a história de um crime, um dos mais originais já cometidos na literatura. Insatisfeito com o desempenho sexual da mulher ("Envergonho-me de começar o ano expondo tais queixas, mas ao mesmo tempo acho bom escrever sobre elas"), o marido parece empurrá-la em direção ao colega Kimura (ambos são professores universitários), como a exacerbar o próprio ciúme e alimentar a paixão, numa seqüência de simulações e subentendidos em que a filha também terá um papel relevante ("Os maridos se acostumam à silhueta de sua mulher de tal forma que é mais fácil para um terceiro observar mais atentamente essas sutilezas").

Trata-se de uma guerra misteriosamente consentida por todos, de um jogo de xadrez sexual que revela em cada um de seus lances o desejo de escapar de um mundo congelado de repressão, hierarquia e incomunicabilidade, tudo isso no limiar tenso da invasão da cultura ocidental. O marido faz referência ao romance de William Faulkner Santuário (que é justamente a história brutal de uma colegial violentada por um bandido), e a mulher, pela primeira vez, veste roupas ocidentais ("A moda agora parece ser usar o quimono como se usa uma roupa européia, mas minha mulher, ao contrário, veste a roupa européia como se fosse um quimono"). Em outro momento, o marido usa uma polaróide ("algo extraordinário") para fotografar a mulher nua que apenas finge dormir. Todas as situações e diálogos são mais ou menos ritualizados, e a enganosa simplicidade da linguagem aparenta a transparência tranqüila de uma gravura japonesa. Mas o que parece ingenuidade é de fato o império da mentira, e a força da tradição apenas a muleta da hipocrisia. Ao afirmar, por exemplo, que a traição não ultrapassou "a última linha", Ikuko dirá: "Será que meu marido acreditará em minhas palavras? (...) Talvez devido à criação estritamente feudal, há sempre em minha cabeça rígidas convenções. (...) Assim sendo, continuo-lhe nesse sentido fiel, e não faço nada que não se enquadre nessa definição". Curiosamente, Oriente e Ocidente se encontram no mesmo dilema, entre a palavra, o fato e a honra, como a personagem confessa, ao modo do presidente Clinton: "Ficaria embaraçada se me pedissem para explicar mais concretamente".
A forma de diário potencializa todos os sentidos da linguagem, mas é claro que o procedimento composicional não faz a arte por si, como queriam os primeiros formalistas, ou a literatura inteira se reduziria a um catálogo de carpintaria. É somente contra o pano de fundo dos valores da repressão e de suas formas ritualizadas, mais a nossa dimensão ética diante delas, que "A Chave" alcança a sua estranha e desconfortável beleza.



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