O diabo mesquinho, de Fiódor Sologub
Folha de S. Paulo, Ilustrada, 08/mar/2008

Escritor pouco conhecido cria mundo sinistro de sabor popular

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na literatura russa da segunda metade do século 19, o movimento simbolista exerceu um papel precursor importante, abrindo caminho para o experimentalismo dos célebres formalistas que, no início do século 20, criariam parte da pauta dos estudos literários dominantes até hoje. O objetivo do simbolismo era "libertar" a palavra de sua suposta escravidão referencial, dando-lhe vida própria (ela é um "símbolo"); ao mesmo tempo, ela deveria revelar valores mais profundos da realidade -e aqui está o liame que o movimento mantém com a vida ideológica. Assim, o artista trabalha a "natureza construtiva" da palavra (como objeto gráfico e sonoro), enquanto procura extrair dela sua dimensão arquetípica.

O romance "O Diabo Mesquinho", do pouco conhecido Fiódor Sologub (1863-1927), lançado agora numa edição bem cuidada, é uma bela e rara amostra em prosa desse movimento. É uma narrativa simples, quase uma fábula de costumes: numa cidade pequena, o professor solteirão Peredónov mora com sua prima Várvara, que deseja se casar com ele. Ao mesmo tempo, Peredónov é disputado por muitas mulheres, e hesita entre elas. Para garantir seu posto, a prima falsifica uma carta de uma princesa que garantiria ao professor o desejado cargo de inspetor, e por esse meio ilícito garante o casamento.

Ao longo desse fio ingênuo de sabor popular, entretanto, Sologub cria um mundo sinistro e aterrador, comandado por forças incontroláveis, em que sentimos a tensão de todas as linhas de força de um momento de transição -uma transição estética, em que o clássico realismo psicológico e social de monstros como Dostoiévski e Tolstói começa a perder o seu eixo de referência concreto (substituído momentaneamente pela mística difusa dos mitos e dos símbolos), e também uma transição política, de uma Rússia encarquilhada prestes a explodir.

Bajuladores bêbados

O pano de fundo é um mundo opressivo de funcionários públicos acovardados diante de um poder invisível que os massacra do nada, uma legião de desocupados e bajuladores bêbados, e um agoniante cotidiano cuja única lei é a onipresente violência física.

Peredónov, que começa a se construir por traços psicológicos em estado bruto, é um pequeno canalha, de uma inacreditável mesquinharia, afundado num jogo de interesses miseráveis que acaba por destruí-lo. Em vários momentos transfigura-se em um arquétipo do mal, mas sempre sentimos no personagem o eco satírico e realista de seus antecessores, de Nicolai Gogol (do clássico "O Capote") a Dostoiévski, com suas "vozes do subterrâneo": "Em todos os lugares, moravam pessoas estranhas a ela, inóspitas. Para Peredónov, talvez algumas estivessem tramando contra ele".

Enlouquecimento

O progressivo enlouquecimento de Peredónov vai se criando em torno de um mundo carnavalesco, irracional, de um pessimismo delirante e transcendente, fora do alcance da ação humana.
Todos os elementos populares que pontuam a narrativa, das festas e do riso fácil, da dança e dos mistérios insondáveis, aparecem em fragmentos, símbolos de um mundo que irrompe por conta própria.
A contrapartida luminosa do livro -o lirismo erótico e sutilmente transgressor da relação entre o adolescente Sacha e a sedutora Ludmila ("Como é absurdo que os meninos não andem nus!")- abre o romance para o século 20. O simbolismo de Sologub se encontra com o mundo dos sonhos de Sigmund Freud.

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