Horizonte de chão e paredes
Folha de S. Paulo, Mais!, 14/05/2006


Na linhagem dos marginalizados da ficção urbana brasileira, "Contos de Pedro" constrói um universo sem escolhas

CRISTOVÃO TEZZA

Arriscar um perfil da nova prosa brasileira é trabalho de especialista que exige distância. A falta de perspectiva nos deforma o olhar, mas sem dúvida já há um bom número de autores significativos marcando território, em linhas diversificadas, com obras consistentes.

E territórios fortes: entre nomes como Bernardo Carvalho e Milton Hatoum, dos já legitimados pelas instâncias críticas, ou André Sant'Anna e Marcelo Mirisola, abrindo caminho nelas, há toda uma pletora de autores tentando dizer quem são e para que servem -se é que na arte essa pergunta faz sentido.
E, embora há muito tempo não se entenda mais literatura como "reflexo da sociedade", o fato é que ela acaba por ser um mapa singular do espaço em que se move. A palavra que se escreve leva o mundo nas costas, mesmo à revelia.
Vai essa introdução para falar de um autor que faz do território -no sentido espacial do termo, de chão mesmo, por mais abstrato que pareça- o melhor de sua literatura.

Rubens Figueiredo, em seu "Contos de Pedro", nos conta nove histórias que delimitam, ao ritmo de um estilo pessoal que se constrói justamente na impessoalidade e na ausência deliberada de retórica, um transbordante (e asfixiante) espaço, marcado sempre por chão e por paredes -e por "pedros" angustiantemente estrangeiros.

Um deles se pergunta "se não vivia encolhido demais, apegado demais ao pouco, ao rasteiro que era o seu". O mundo que esse texto carrega nas costas, entretanto, nos é familiar: em todos os contos, estamos perfeitamente em casa; um Brasil inteiro estrangeiro se escancara aos olhos de quem sabe ler.

Além da autonomia das histórias isoladas, revela-se nítido um olhar de conjunto que procura transcender a fábula ou a anedota implícita na idéia de conto, a sua "corrida contra o tempo", como o definia Cortázar. Em "Contos de Pedro" perpassa um certo sopro romanesco, olhando antes o conjunto que o instante decisivo, marca do gênero.

A própria escolha do nome único dos personagens já é índice dessa busca do todo e da inter-relação entre as partes, e pensar no seu sentido simbólico será inevitável.

A linguagem do livro tem o ritmo compassado de uma respiração; as frases curtas, medidas como que por acaso, avançando lentas, quase nunca saem de seu trilho mecânico, mas atento, e por elas vamos flagrando prosaicamente, sem nenhuma altissonância, o desespero de um mundo sem escolhas.

Filhos de pobres-diabos

O narrador, indiferente -ou no máximo permitindo-se uma curiosidade distante-, desdobra os seus "pedros", em certa medida filhos dos clássicos "pobres-diabos" que fizeram boa parte da literatura urbana brasileira, como quem apenas conta casos, quem sabe curiosos, mas despersonalizando-os ao osso, numa autópsia dos sentidos.

Em "O Dente de Ouro", um Pedro porteiro de prédio fareja a cada instante o que fazer na estupidez de seu trabalho, atrás dos sinais de um mundo que não lhe pertence e onde ele só cabe sendo nada: "Um reflexo na porta de vidro, uma buzina na rua, as antenas de uma barata na fenda de um ralo: o mundo era encenação pura. Cada fato pronunciava uma senha destinada a abrir a porta para um outro fato".

Destruído pelos iguais a ele, volta ao seu lugar de origem, e descobre-se que esse Pedro não é mais ninguém e vive (mas vive, concretamente) em lugar nenhum.

No realismo peculiar de Figueiredo, os fatos, detalhados quase no seu limite, têm apenas um mínimo de moldura ou contexto, nunca para explicar, justificar ou psicologizar, mas apenas para reforçar a coisa em si, no seu estado quase bruto, não fosse o narrador alguém que mantém ainda um tênue laço de espanto com o mundo que vê. O efeito dá à realidade um toque de fantasmagoria: estamos em lugar nenhum, e é apenas a cabeça do leitor que complementa os fios daquele cenário, afinal o nosso chão de todos os dias.

Em outro momento, talvez o mais poderoso do livro, "Uma Questão de Lógica", o cálculo dos espaços e das relações familiares, também todos destituídos de uma moldura ampla que dê àquela favela (uma palavra que o autor jamais usa) a tranqüilidade de um olhar social organizador e suas subseqüentes explicações redutoras, vai criando a dimensão terrível do que é contado -aqui, pelo próprio Pedro da vez.

Outro Pedro, com um saco de lixo na mão, vivendo em meio ao lixo, pensa antes no cão do que em si mesmo, no momento em que se vê -como se não fosse ele próprio- alvo da mira de uma arma.
Nos raros momentos em que o narrador abandona o mundo concreto das coisas, o texto perde força, como em "A Última Palavra" -com a linguagem fora de seu habitat, a caricatura de um escritor acaba por não se realizar nem como sátira, indecisa na insegurança de seu meio-tom. Mas é a exceção. No forte conjunto, o narrador, "místico das coisas mais rasteiras", como seus "pedros", mantém os olhos sempre à altura do que vê, para dali extrair, a pau e pedra e dois ou três sentimentos brutos, a transcendência possível de um chão absurdo.


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