Por que ler os clássicos brasileiros
Folha de S. Paulo, Ilustrada, 17/fev/2008

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muito já se disse para defender a literatura brasileira e tentar quebrar a resistência que o próprio leitor parece sentir com relação a ela -pelas listas de best-sellers, percebemos de fato que há algo de estranho no reino das nossas letras.
E a defesa sempre parece ganhar um tom patriótico, repercutindo afinal nossa própria história literária, em que a questão da famigerada "identidade" tem sido freqüentemente um ponto de honra. Mas penso que podemos defender a literatura brasileira sem recorrer a álibis, observando apenas um ponto de partida -a língua portuguesa do Brasil, não como uma entidade oficial, mas como a linguagem que criou a forma da nossa visão de mundo, em toda a sua imensa variedade.

Do histórico pessoal e social da língua, não podemos nos livrar por escolha; a língua dirige nosso olhar, escolhe objetos e referências, estabelece relações, cria entonações, se multiplica em subentendidos e muitas vezes fala por nós. E, dentre todas as formas da língua, do padrão escolar aos mil dialetos populares da oralidade cotidiana, a literatura consolida um padrão de civilização, a passagem entre a liberdade da fala e a dureza da escrita; e, mais que isso, é o grande elo de ligação entre o indivíduo -esse desejo solitário de dizer, que é a alma da literatura- e a sociedade, a quem respondemos com nossa palavra.

Essa relação poderosa entre a nossa língua e o olhar que ela encerra, em estado de liberdade, pode ser encontrada na literatura brasileira com grande nitidez. Mais que isso, ela é a ponte que afinal pode nos tornar cidadãos do mundo. É um bom motivo para conhecê-la.

Dos 20 livros da "Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros", começo por lembrar a importância em minha formação pessoal dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, versos que ressoam até hoje como formas insubstituíveis de reconhecimento do mundo, na minha língua.

Lugar das diferenças

A percepção da realidade pela voz de seus poemas criou um sistema de referências que nenhuma outra forma da linguagem -todas utilitárias, a serviço de algum objetivo imediato- seria capaz de dar. Em seguida, a leitura da prosa de Graciliano Ramos me abriu outro universo. A sua frase curta e seca, falando de um mundo a um tempo terrível e próximo, avançava como que desmontando as coisas que eu via pelos olhos dele.

Quase ao mesmo tempo, entrei nos textos de Machado de Assis para descobrir também naquela linguagem o que de fato me interessava na literatura, o ponto de confluência mental entre língua, indivíduo e sociedade, em que as formas da nossa sensibilidade são postas à prova página a página. Um bom texto literário não é apenas um sistema de referências descritivas, abstrato e redutível a um código -é uma voz pessoal que tem algo urgente a nos dizer, usando a nossa palavra.
Com Drummond, Graciliano e Machado, aprendi fundamentalmente um modo de olhar o mundo, de perceber suas relações e sentir seus valores; eles sugeriam sutilmente quem eu era e onde eu estava. E com eles descobri e consolidei minha linguagem pessoal.

Mas, é claro, como a literatura é o território das diferenças, ela revela milhares de modos de ver -cada bom escritor tem sua marca inconfundível, apresenta um repertório novo de referências e nos propõe um ângulo do olhar.

No caso da literatura brasileira, com um detalhe fundamental: usando substancialmente as palavras, entonações, sentidos e frases que deram forma à nossa cabeça, desde a aquisição da linguagem (considerando, também, a passagem nem sempre tranqüila ao mundo da escrita).

Exótico, épico e sensual

Para escolher, graduar e até mesmo negar, é preciso conhecer. A literatura brasileira nos dá muitas chaves para pensar nosso espaço e nossa vida. Com autores como Jorge Amado e Erico Verissimo, grandes narradores do Brasil do século 20, entramos em contato com concepções de mundo, de linguagem e de país cuja influência continua ressoando no nosso imaginário. O Brasil exótico e sensual e o Brasil épico se entrelaçam nesses autores e continuam a nos colocar questões importantes hoje, quando nosso perfil rural já não é o mesmo de 50 anos atrás.

E um autor como Guimarães Rosa acrescenta elementos mágicos e místicos, dando à sabedoria popular uma inesperada transcendência, pela força transfiguradora da linguagem. O apelo regional tem sido, aliás, fonte permanente de nossa narrativa -"Memorial de Maria Moura", de Rachel de Queiroz, que integra a coleção, é um belo exemplo. Em outra chave, o clássico "Macunaíma", de Mario de Andrade, o herói sem nenhum caráter, continua a nos desafiar com a sua proposta poética de uma identidade brasileira.

O charme do exotismo, um eterno canto de sereia, às vezes encontra seus inimigos ferozes pela voz da sátira. Autores tão díspares como Lima Barreto (e seu maravilhoso "Triste Fim de Policarpo Quaresma") e Oswald de Andrade (com o demolidor "O Rei da Vela") batem frontalmente na ilusão do nosso berço esplêndido. A voz da imagem do povo encontra ressonância no teatro de Ariano Suassuna ("Auto da Compadecida") e na poesia dramática de João Cabral de Melo Neto -em "Morte e Vida Severina", a dura lapidação formal do grande poeta encontra-se com o apelo popular.

Ainda no teatro, o clássico "Vestido de Noiva" inaugura outra desmontagem radical do homem brasileiro: mais que ninguém, Nelson Rodrigues entendeu que não somos santos. O lirismo, representado na coleção em versos e crônicas, estabelece um parentesco sutil que começa com o pernambucano Manuel Bandeira, passa pelo carioca Vinicius de Moraes e vai até o gaúcho Mario Quintana; o "Romanceiro da Inconfidência", de Cecília Meireles, recria com traços épicos emblemas da nossa história.

E o "Poema Sujo", de Ferreira Gullar, é uma síntese contemporânea de nossas múltiplas vertentes poéticas. Finalmente, dos prosadores urbanos mais recentes, dois momentos políticos fundamentais da nossa história estão representados na "Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros" -"Agosto", de Rubem Fonseca, tematizando o suicídio de Vargas, e "Reflexos do Baile", de Antonio Callado, retomando as complexas ramificações do golpe de 1964.




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