O elo perdido
Folha de S. Paulo, Mais!, 26/02/2006

Situações I ,
de Jean-Paul Sartre

Ensaios de "Situações 1", sobre Faulkner, Dos Passos e outros, mostram que Sartre considerava o romance um gênero vital da modernidade

CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A crítica literária ganhou ou perdeu nos últimos 60 anos? Essa pergunta serve como provocação para comentar a coletânea "Situações 1", do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), publicada em 1947 e que agora é lançada no Brasil numa bem cuidada edição.

Naturalmente, o objeto central de Sartre não é a literatura, mas a filosofia, num momento da história em que Deus já está morto, os grandes sistemas interpretativos do mundo sofrem de fadiga de material e restamos, coisas entre coisas, diante do vazio, da falta de sentido e do absurdo: esse é, numa simplificação grosseira, o material deste filósofo, que encontrou no alemão Martin Heidegger (1889-1976) a sua mais poderosa referência.
Dos engajamentos históricos, se Heidegger vestiu por um momento infeliz o uniforme nazista, Sartre, décadas depois, cairá na esparrela trágica da revolução cultural maoísta. Nas últimas décadas, parece que a estátua perdeu seu brilho, e Sartre saiu discretamente de circulação. Mas em "Situações 1" estamos diante da crítica literária no seu sentido estrito, e não na pura abstração filosófica. No caso de Sartre, a crítica é "filosofia aplicada", e aí reside o fascínio dos seus ensaios.

A arena da época

Interessa-lhe a visão de mundo do texto literário, mas ele não se limita, nunca, ao aspecto apenas discursivo dos conteúdos, embora ainda separe uma coisa de outra ("é hora de passar ao exame do conteúdo", dirá em vários momentos).
Como por intuição -porque ele não formaliza nenhuma teoria da linguagem-, Sartre vai sempre buscar correspondências formais para as conclusões que tira. Ao mesmo tempo, sua percepção do romance como um dos gêneros vitais da modernidade é surpreendente ainda hoje; o romance é a linguagem capaz de dar expressão à filosofia sem perder seu traço romanesco; de certa forma, é um olhar do mundo posto à prova.

Sartre sempre pensa grande quando pensa na literatura -pressentimos que o romance para ele é a arena dos temas maiores do tempo, e é só assim que ele ganha sentido. Para Sartre, uma das questões centrais do gênero é a articulação do ponto de vista que a narração estabelece, num mundo em que resta inaceitável qualquer onisciência - estamos condenados ao nosso próprio olhar. "Ninguém pode compreender por nós", e a linguagem romanesca moderna seria a expressão viva dessa orfandade.
Os ensaios sobre a dimensão trágica do escritor americano William Faulkner são reflexões também sobre a percepção do tempo e de suas formas ("O Homem de Faulkner -Criatura Privada de Possíveis").
Em John dos Passos, para ele (em 1938) "o maior escritor do nosso tempo", Sartre investiga a relação entre narrador e personagem, revelando a pedra de toque da natureza romanesca, "o homem inacabado" (repetindo aqui a expressão de Mikhail Bakhtin, o russo que na mesma época escrevia seu tratado sobre a prosa artística): "No romance", diz, "os dados não estão lançados, pois o homem romanesco é livre".

Em outro instante, pressente a duplicidade inata de todo enunciado e parece fazer eco ao Bakhtin (então inédito) dos anos 1920: "Com freqüência o narrador não mais coincide totalmente com o herói: o que ele diz, este não poderia absolutamente ter dito; mas sentimos uma cumplicidade discreta entre eles".

Às vezes, Sartre instrumentaliza suas percepções técnicas - para destruir François Mauriac, por exemplo, diz que "os seres romanescos têm suas leis, das quais a mais rigorosa dita que o romancista pode ser testemunha ou cúmplice daqueles, mas nunca os dois ao mesmo tempo". O que era qualidade em John dos Passos será a desgraça em Mauriac, escritor cristão.

Em outro momento, Sartre vê na "falta de raízes" - em última instância, a marca central da consciência moderna - o ponto fraco do russo exilado Vladimir Nabokov, tratado com visível má vontade pelo crítico: os emigrados "não se preocupam com nenhuma sociedade" e, como Nabokov, estariam condenados a tratar de assuntos gratuitos.

Guerra ideológica

Em tempos de Stálin, uma afirmação dura. Aqui sopra o vento da guerra ideológica: a Nabokov, Sartre contrapõe um certo Iouri Olecha, escritor soviético. Do lirismo bizarro de Francis Ponge, autor de "O Partido das Coisas", cuja linguagem antropomorfiza os objetos, suprimindo o senso de hierarquia entre homens e coisas, Sartre extrai uma curiosa e fascinante investigação sobre a nossa percepção do mundo.

Finalmente, uma palavra sobre o formidável poder da retórica de Sartre, a empatia de sua linguagem: por mais hermético que seja o tema, Sartre escreve como quem conversa. Sua sintaxe acumula frases curtas, entrecortadas, que não pressupõem sistema; ele parece avançar ao sabor da própria descoberta, desdobrando as conseqüências do que disse como se apenas naquele instante a idéia lhe surgisse.
Freqüentemente confessa: "Não sei". E, subitamente, iluminam-se metáforas saborosas, epigramas, afirmações compactas, conclusões demolidoras: "A frase é um silêncio sobressaturado", ou "Deus não é um artista; Mauriac tampouco".
A crítica sartriana transborda, e é esse o seu poder e a sua beleza. E voltamos à pergunta inicial: sim, nesse mais de meio século a crítica perdeu muito quando abdicou da filosofia e se refugiou na intenção de ciência. Como hoje, parece, não temos nem uma coisa nem outra, reler Sartre é um modo de vislumbrar a literatura em sua dimensão perdida.


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