Bastidores culturais da periferia
Folha de S. Paulo, Mais!, 27/02/2005

Trincheira, Palco e Letras,
de Antonio Arnoni Prado

Dedicado sobretudo à primeira metade do século 20, "Trincheira, Palco e Letras", de Antonio Arnoni Prado, discute de Euclides da Cunha e Augusto dos Anjos até o anarquismo no romance e no teatro

Cristovão Tezza

A atividade crítica freqüentemente tem sido ela mesma objeto difuso de crítica - ou por estabelecer sólidas mediocridades no espaço jornalístico ou por se render ao varejo das resenhas, esse difícil soneto do espaço cultural com suas poucas linhas de informação e opinião, ou ainda por se encastelar nas fortalezas universitárias, em códigos especializados demais para o leitor comum.

No mundo acadêmico brasileiro, houve de fato, a partir dos anos 1970, um retraimento em que a universidade, sob o sopro tardio da poderosa ilusão formalista, se viu vítima de uma alma tecnocrática, com foros de ciência exata, que esterilizou boa parte da nossa crítica. É preciso resistir entretanto a essa espécie de elogio da estupidez, cada vez mais freqüente, que não vê utilidade em "altos estudos" nem diferença entre Shakespeare e a novela das oito.

A crítica acadêmica tem a função indispensável de tirar a literatura do seu valor de mercado e vê-la sob o prisma das humanidades, recolocando a obra de arte na sua utopia primeira. Sem perder de vista a avaliação técnica do texto que se lê, há uma concomitante dimensão ética no ato da crítica, qualquer que seja a corrente teórica do crítico.
"Trincheira, Palco e Letras - Crítica Literatura e Utopia no Brasil", de Antonio Arnoni Prado, é um exemplo de boa crítica acadêmica. Professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e dono de uma respeitável obra, Arnoni Prado reúne neste livro 25 ensaios, divididos em cinco partes que são uma espécie de roteiro de sua produção, concentrando-se em seus tópicos preferidos, cobrindo principalmente a primeira metade do século 20.

Boa parte do livro tem como objeto o que podemos chamar de "periferia" da vida literária, os autores menores que fazem uma espécie de moldura de uma época; neles, encontramos signos poderosos para compreender as sempre indispensáveis relações entre literatura, idéias e sociedade que animam o ideário crítico do autor.

Em "Boêmios, Letrados e Insubmissos", por exemplo, Arnoni Prado investiga em aspectos da produção literária do começo do século 20 o conflito entre a idéia de pátria e os sonhos cosmopolistas, a dificuldade de fundar um Brasil "europeu", encaixando nele as "raças inferiores".

Obras messiânicas

Ou vemos, numa crônica do hoje esquecido Mário Pederneiras, como o encanto com a chegada ao Rio de Janeiro do moderníssimo automóvel pôde conviver com a brasileiríssima (e renitente) miséria que o cercava:"Trazido pela máquina, um novo símbolo ético empurrava a literatura para o arrivismo dos que desfrutavam da vida com o alarde de praxe das situações de poder e de ostentação".

Em "Cena Libertária", seis ensaios fazem uma rara retrospectiva do movimento anarquista do início do século 20 e suas obras de combate, no romance e no teatro, resgatando nomes como Fábio Luz e Curvelo de Mendonça e suas obras messiânicas, em que o imaginário despertado pela tragédia de Canudos inspira repetidamente uma espécie de comunismo -e vemos como as teorias do escritor russo Leon Tolstói (que no fim da vida entregou suas terras aos camponeses) encontrou eco longínquo aqui no Brasil.

No ensaio "Quando a Itália era no Brás", Arnoni Prado relembra a popularidade do teatro "ítalo-paulista" e a viva mistura de vozes que fará a beleza da literatura de Antônio de Alcântara Machado; em seguida, relembra o teatro de Luigi Damiani, agitador socialista expulso do Brasil e que da Itália cantaria a decepção brasileira: "Quanto à anarquia [...], nem mesmo em sonho: comer e ter direitos mínimos, se isso ao menos fosse possível, seria aqui uma façanha notável".

E ficamos conhecendo, em outro momento, o curioso teatro de José Oiticica, a figura que encarnava tanto o sisudo catedrático do colégio Pedro 2º, admirador dos parnasianos, quanto o anarquista incendiário, cabeça do levante de 1918 -aspecto que, observa Arnoni Prado, foi mais ou menos esquecido nas celebrações que recebeu.

Monstros da estranheza

A terceira parte ("Interregno") é dedicada a dois monstros da estranheza brasileira: Euclides da Cunha e seus sertões, objetos de um olhar que investiga a sempre difícil relação entre o peso do estilo e a verdade do documento, aspecto inescapável da obra de Euclides; e Augusto dos Anjos, talvez o mais inclassificável dos nossos poetas.
Em "Variações sobre um Narrador Sitiado", quarta parte do livro, seis ensaios viajam principalmente em torno de outros dois "periféricos", mas de outra dimensão -Lima Barreto e João Antônio e suas difíceis relações com o mundo. Particularmente iluminadora é a análise da correspondência entre o comerciante Monteiro Lobato e o fracassado Lima Barreto.

No ensaio seguinte, o texto assinala o paralelo entre o cárcere de Graciliano Ramos e o hospício de Lima Barreto, signos do mesmo desespero da escrita como libertação ("em Graciliano, a própria linguagem se encarrega de mostrar que não há esperança"). Em outro momento, Arnoni Prado analisa a cooptação de Lima Barreto por João Antônio; e por último, em saborosa reminiscência, vemos como Sérgio Buarque de Hollanda encontrou Lima Barreto a pedido de Mário de Andrade.

Na quinta parte, "Retratos de Fim-de-Século", o crítico cede lugar ao memorialista, relembrando generosamente, entre outros, figuras-chave da cultura brasileira, como Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido. Em qualquer caso, encontra-se no livro a dádiva da clareza, lado a lado com o rigor acadêmico. E respira-se em "Trincheira, Palco e Letras" o mundo além das obras, esta vasta amarração de motivos, temas, idéias, intenções, história e ideologia, aos quais, com apenas duas mãos e o sentimento do mundo, o crítico deve dar algum sentido.


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