O imitador de vozes
de Thomas Bernhard
Guia da Folha, setembro de 2009

Cristovão Tezza

A Áustria foi o centro de um complexo império político que entrou para a história da inteligência do século 20 como fonte de gênios – Sigmund Freud, o criador da psicanálise, o pintor expressionista Egon Schiele e o escritor Robert Musil, autor de “O homem sem qualidades”, são alguns deles. Em outra face, menos vistosa, foi a terra natal de Hitler – e também um dos berços mentais do nazismo.  Numa perspectiva mais amena, vastas regiões do país são conhecidas pela sua beleza inóspita, altas montanhas, desfiladeiros e precipícios onde a neve e o verde competem, sob a proteção de hospedarias pitorescas, para atrair turistas ao som da música típica do Tirol.

Lá viveu, também, Thomas Bernhard (1931-1989), um dos mais visceralmente agressivos escritores do século passado – e alguém que, nascido por acaso na Holanda mas radicado na Áustria desde criança, dedicou sua vida a falar mal do país, a ponto de tornar esse mal-estar um dos pontos centrais de sua arte. Um dos itens de seu testamento foi a proibição expressa de que peças suas fossem representadas e seus textos inéditos fossem publicados no país – o mesmo país que, hoje, subsidia a tradução de seus livros para o resto do mundo. Podemos nos perguntar como um projeto aparentemente tão limitado – que um leigo creditaria a uma mera expressão de ressentimento confessional, beirando a circularidade obsessiva da loucura – possa de fato se transformar em grande literatura. Em livros como “O náufrago”, “Árvores abatidas” e “Extinção”, e mesmo em textos autobiográficos, como “Origem”, um narrador exasperado e aparentemente sem rumo, que se realiza em frases a um tempo irresistíveis e intermináveis, vai como que destruindo a golpes de medida impaciência qualquer possibilidade de remissão humana.

Um exemplo: “Num hotel do centro de Viena, cidade que sempre tratou pensadores e artistas com a maior falta de consideração e desfaçatez possíveis e que poderia com certeza ser chamada de o grande cemitério de fantasias e das ideias, porque dilapidou, desperdiçou e aniquilou um número mil vezes maior de gênios do que aqueles aos quais de fato emprestou fama e renome mundial, foi encontrado morto um homem que, com absoluta clareza de pensamento, deixou registrado num bilhete o verdadeiro motivo de seu suicídio, bilhete que, então, prendeu ao paletó.” O trecho é de um dos 104 textos curtos que compõem o livro “O imitador de vozes”, que acaba de ser lançado.

Estruturalmente distinta de suas narrativas mais conhecidas, a obra mantém intactas a linguagem e a verve de Thomas Bernhard – um texto que parece avançar sempre uma oitava acima e lá se manter até o fim, sem perder a sua estranha e brutal intensidade. Há a sombra de um humor negro em todas as páginas, mas nada se reduz a uma anedota – o leitor ri de algo que não consegue controlar ou definir.

Este meticuloso painel do desespero se compõe de breves apólogos, relatos aparentemente jornalísticos, casos curiosos ou inexplicáveis, coincidências estranhas – vacas que se arremessam contra um trem, espeleólogos que se perdem numa caverna atrás de outros espeleólogos que também se perderam, grande número de gente aparentemente feliz que se lança de despenhadeiros turísticos, burocratas obsessivos, colegiais suicidas. O narrador dessas histórias a um tempo insólitas e prosaicas, em que não há quase nada de onírico ou alegórico, frequentemente é uma representação coletiva: “chamou-nos a atenção”, “conhecemos um homem”, “nosso tio, que era proprietário de uma fábrica de tabaco”, “No enterro de um lenhador de Irresberg, com quem estivéramos”, “Para nosso horror”. Esse “nós”, que nunca se apresenta, é a representação de um coro, uma voz coletiva, o temível “senso comum” – ou a voz da Áustria, que Thomas Bernhard transformou numa província asfixiante e opressiva e numa das obras mais desconcertantes da literatura ocidental.