Realismo e verdade
Folha de S. Paulo,12/09/2009

Feia de rosto, de Arthur Miller

Novela de Arthur Miller ilustra contraste americano entre representação da realidade e impulso de "não mentir"

CRISTOVÃO TEZZA

A OBSESSÃO da literatura norte-americana pelo registro realista parece menos um anacrônico desejo de representação fotográfica da realidade, como às vezes tendemos a interpretar, e muito mais o impulso, talvez de raiz puritana, de "não mentir". Assim, o ponto de vista narrativo nasce de uma constituição ética do mundo em que a noção de verdade, uma categoria não exatamente romanesca, está implícita no amor à realidade (o ponto de partida de toda representação), o que deu historicamente uma medida precisa ao seu trilho ficcional.

Isso explicaria a eloquente ausência na prosa americana moderna e contemporânea de fantasias poéticas. A novela "Feia de Rosto", escrita por Arthur Miller (1915-2005) nos seus 77 anos, pode servir de ilustração didática desse contraste. No livro, Janice acorda numa segunda-feira e descobre que seu marido, de 68 anos, morreu dormindo, e segue-se um retrospecto da vida da protagonista que é, também, um breve apanhado da vida intelectual nova-iorquina desde a eclosão da Segunda Guerra.

Nessa primeira parte, Janice, que se recusa "a fazer vista grossa a qualquer coisa negativa", confessa-se ironicamente uma mulher de rosto feio, enquanto narra suas desventuras com o primeiro marido, um ativista de esquerda que, como todos os camaradas da época, fazia uma dura ginástica intelectual para justificar Stálin.

Ao tema político, imbricam-se os temas da traição e da família, grandes centros de valor da cultura americana. Num momento, a protagonista, que não se dá bem com o irmão, acaba esquecendo as cinzas do pai num balcão de bar depois de uma discussão -nesse misto sutil de humor e tragédia, encontramos um bom exemplo da linguagem do melhor romance americano e de seus impasses morais em torno justamente da verdade: "Talvez fosse mais fácil para um casamento sustentar duas pessoas mentindo em vez de uma".

Na segunda parte, Arthur Miller tenta transcender a camisa de força dos "fatos", digamos assim, quando Janice se apaixona idilicamente por um homem cego, que, é claro, jamais se importará por ela ser feia. A tensão da novela foge pelo terreno da alegoria, em que carências se transformam em valores poéticos.

O olhar antes agudo de Janice encontra agora refúgio em quem não pode vê-la: "A mão dele descobriu seu corpo bem feito e feliz. Era toque puro, pura verdade além das palavras".

Se a solução parece sentimentalmente engenhosa, a literatura, aqui um peixe fora d'água, paga caro por ela, porque o narrador terá de trair justo o que dava vida ao seu texto: os impasses do imperativo ético da verdade diante de uma realidade inescapável.

 


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