Uma boa amostra
Folha de S. Paulo,10/10/2009

Sede do mal, de Gore Vidal

Para Gore Vidal, o conto é antes um gênero desgarrado da narrativa longa que uma forma autônoma

CRISTOVÃO TEZZA

A VASTA E multifacetada obra do escritor americano Gore Vidal, nascido em 1925, abrange romances, ensaios, peças de teatro e roteiros para cinema. Analista e crítico da cultura política dos EUA, que dissecou numa série de romances históricos, foi candidato a senador por Nova York nos anos 1960, perdendo por pequena margem.

Poucos anos antes, causara impacto com um romance sobre uma relação homossexual, um dos seus temas centrais. Sua obra entrelaça o horizonte histórico com o mergulho visceral na própria vida. Em "Palimpsesto" (1995), seu livro de memórias, Vidal revela o ódio mortal que nutriu por sua mãe, segundo ele um sentimento mútuo, além de arrolar com franqueza as relações com homens e mulheres que cultivou pela vida.

Pois nesse conjunto amplo que abarca todos os gêneros, publicou curiosamente um único e breve livro de contos, "Sede do Mal - Contos de Decadência e Corrupção", agora traduzido no Brasil com apresentação biográfica de Marcos Soares. São apenas sete histórias que reforçam a ideia de que para o romancista Gore Vidal o conto é antes um gênero desgarrado da narrativa longa que uma forma autônoma. No caso dele, que domina com elegância os recursos que fizeram da prosa americana uma referência obrigatória do realismo moderno, os contos são sínteses de seus temas.

Entre eles, destaca-se o homoerotismo, abordado sempre sob o ambíguo prisma romanesco como um rico foco literário, e não como uma bandeira política. Em "Três Estratagemas", um senhor relata com algum cinismo estoico a caça de parceiros num hotel da Flórida. Nas "Páginas de um Diário Abandonado", um doutorando em Paris conta seu contato com um certo Elliot, mais tarde preso por corrupção de menores. Alguns detalhes do narrador são biográficos, como a paixão de juventude por um fuzileiro naval que morreu na guerra.

Outro instante claramente biográfico é a tensão entre mãe e filho de "Um Momento de Louro Verde", em que se cruzam a política e a família com um toque sentimental, mas bem resolvido -o narrador conversando com ele mesmo quando criança, diante da casa da infância que a mãe vendeu, um motivo que reaparece em "As Damas na Biblioteca", quando primo e prima se reencontram na mesma casa, sob um vago plano de casamento.

Em "O Tordo", a crueldade infantil assoma do terreno dúbio das boas intenções, mas sem perder uma sutil percepção do que realmente acontecia. "Erlinda e o Senhor Coffin" é uma saborosa caricatura do sul dos EUA. E "O Troféu Zenner", um conto perfeito, realiza o melhor de Gore Vidal, ao acompanhar o tormento de um professor medíocre que deve comunicar a um aluno brilhante que ele foi expulso da escola.


voltar