Refinada delicadeza
Folha de S. Paulo, 02/01/2010

Beethoven era 1/16 negro, de Nadine Gordimer

Em "Beethoven era 1/16 negro", a Nobel sul-africana Nadine Gordimer explora realismo das relações amorosas

CRISTOVÃO TEZZA

AOS 86 anos , Nadine Gordimer mantém a mesma vitalidade que a consagrou como uma das consciências agudas da tragédia da África do Sul durante o regime de apartheid. É o que concluímos da leitura de "Beethoven era 1/16 negro", coletânea de contos recentes da autora, tratando agora de uma nova África, em que a questão racial retorna em escala mais sutil, porém ainda acorrentada aos seus fantasmas.

No conto que dá título ao livro, um ex-ativista contra o velho regime procura se encaixar no "novo padrão de privilégios", correndo atrás de um antepassado que lhe desse aquela mágica gota negra -como a de Beethoven, segundo o orgulhoso locutor de rádio, ao anunciar um quarteto para cordas. "Outrora havia negros, pobres-diabos, querendo ser brancos. Agora há um branco,pobre-diabo, querendo se dizernegro. O segredo é o mesmo."

Se o tema é espinhoso, a linguagem de Gordimer não perde a sua leveza coloquial. O narrador conversa quase que concretamente com o leitor ("Mas é tudo puro acaso -de que outra maneira poderia tê-lo encontrado?"), como se em seus relatos houvesse sempre uma conclusão perdida a extrair que precisa de nossa ajuda. Às vezes são simples alegorias, como em "Gregor": o célebre inseto de Kafka reaparece dentro de sua máquina de escrever, impossível de ser extirpado.

Em outro momento, "Sonhando com os mortos", entramos numa ficção onírica, sob um tom de ensaio ede elegia, em que a autora conversacom Edward Said e Susan Sontag, e confessa seus limites: "E eu -minhas opiniões e julgamentos estão lá embaixo, na confusão da vida- não tenho a perspectiva que os mortos devem ter atingido".

Mas é no realismo das relações amorosas, tratadas com uma refinada delicadeza, que a narração deixa mais nítida a clássica simplicidade de Nadine Gordimer. Em "Uma beneficiária", Charlotte, a filha de umaatriz mais conhecida que propriamente famosa descobre umavelha carta que, parece, revela seu verdadeiro pai. Ela vai se aproximando discretamente dele até descobrir a verdade, que não tem "nada a ver com DNA".

Em "Allesverloren", que em africânder significa "tudo perdido", uma viúva quer conhecer o parceiro com quem seu velho marido teve um caso homossexual -mas "o passado é um país estrangeiro", de entrada proibida, como se frisará em outro momento do livro. Na ótima parte final, três narrativas investigam o papel dos "sentidos" na traição conjugal. No conto sobre o olfato, o cachorro fareja a mulher estranha que se revela naaura do marido assim que ele chega em casa, o que dá uma pista à esposa, na solidão da noite: "Uma mistura de infusões da misteriosa química (à) exalando uma flora de sumos da carne".


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