O ESTADO DO PARANÁ
SUPLEMENTO ALMANAQUE
Curitiba, 4 de setembro de 1988


ARRE. ATÉ QUE ENFIM

CESAR BOND

arre. (interj.) 1. Designa cólera ou enfado. 2. Emprega-se para incitar as bestas a andarem.
enfim. (de em fim).
A grande arte de Cristovão Tezza são as armas pretas.
Por armas pretas, entendam-se esses pequenos pingos, símbolos que lutam entre si, até formarem uma palavra.
E que ao formarem uma palavra, detonam um conceito.
E ao detonarem a forma de um sentido, tornam-se um estilo.
Arre. Até que enfim um bafo azedo na mesmice da literatura: alguém com domínio das inúmeras linguagens.
Era só o que faltava. Mal sabia ela (a literatura) "que seu filho depois de (bastante) velho, ainda tem o que se surpreender, ainda é capaz de sentir-se desconfortável na vida".

Desconforto

Este é o "Trapo", o livro de Cristovão Tezza.
Eu "entrei" neste livro. Sinceramente, como o outro.
E quando digo eu, digo apenas isso: eu na linguagem do outro.
Como quem, já de cara, entra atrasado no cinema e diz: aquele ali sou eu, ó. Ou seja: é naquele eu que eu sou. E já sou outro. Mas o Cristovão não aceita personagens nem coadjuvantes. "Trapo" é linguagens. Não é mera aventura de palavras.

E não esqueça: tentar qualquer identificação é um risco.
Em "Trapo", você pode optar entre ser um detetive frágil; um ser diariamente imbecil, que se confronta com outro-ele; um metódico careca de não saber; um acadêmico capaz de matar a própria mãe apenas em palavras; um megalomaníaco com elefantíase; um gênio abortado. Com um detalhe: o gênio (aquele ali sou eu-outro) está morto. Deu um tiro na cabeça... e agora? Onde eu-eu entro nessa história? Só posso entrar pela história.

O melhor personagem é sempre um idiota (Dostoiévski) adolescente.
Só cante de galo na sua própria aldeia (Tolstói).
A tua aldeia é a tua desgraça (Faulkner). Tua aldeia é um útero (Freud). Você carrega um útero (Jung). Um útero não é um personagem (Joyce). Quem precisa de um personagem (Svevo, Calvino, Cabrera Infante)?
O que pode levar alguém (Cristovão) a se preocupar com estas minúsculas e profundas dialéticas, fazendo com que todo personagem seja um feto (Raduan Nassar)? Vou ficar aqui, talvez o problema do personagem não seja nada sério (Borges). Ou seja: saio da história e entro na vida. Dos outros, é claro.

Cantar de galo

Como não personagem posso dizer, ainda que correndo o risco de algumas poucas das muitas armas que o Cristovão usou em "Trapo": o culpado é o escritor, quando consegue usar com estilo todas as linguagens necessárias. Afinal, que direito tem um escritor em descrever esta fortaleza de dignidade aprisionada que é o canto de um galo?
Delírio? Não. O envolvimento criado pelo Cristovão na rinha da vida entre pai e galo é algo que seria indizível se ele (Cristovão) já não tivesse desvendado estes mistérios das linguagens. Nada é indizível. Arre. Até que enfim as linguagens são os outros. A prosa ganha um alívio envolvente, enquanto a "poesia escorrega" na sua indiscutível necessidade de ser autoritária. "Se fosse ficção, não teria reparos".
À "ausência" de um personagem, os acadêmicos criaram uma expressão burra: "meta-linguagem". O discurso cíclico "riscado" é sempre uma revelação biográfica. Exagero ou canto de galo? Engulo e elogio este belo e novo cantar de galo nesta doidivana paisagem que é a literatura brasileira.

Certezas provisórias

a) não existe ficção.
b) a literatura é um búrico: "uma troca dolorosa de curativos".
c) todo escritor é culpado.
d) o ódio cria personagem.
e) a palavra é um alívio provisório.
f) leia "Trapo", de Cristovão Tezza. "Toda a inércia do mundo me escolheu como refúgio".
g) chega.



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